Correia, Natália [Dicionário Global]
Correia, Natália [Dicionário Global]
Natália Correia nasceu em 1923, na ilha de São Miguel, arquipélago dos Açores, mudando-se, com a mãe e a irmã primogênita, para Lisboa, em 1934, onde falece, aos 70 anos, em 1993. Foi poetisa, ficcionista, autora teatral, ensaísta, consultora literária, editora, diretora e escritora de periódicos e de programas televisivos, além de deputada pelo Partido Social Democrata (PSD), eleita em 1979, passando a deputada independente em 1982, e sendo reeleita em 1987 pelo Partido Renovador Democrático (PRD). Correia começou sua carreira literária em 1945, ano em que publica Grandes Aventuras de um Pequeno herói: Romance Infantil. Era este o contexto do final da Segunda Guerra Mundial e do consequente término dos movimentos totalitários fascista e nazista na Europa. Mas a trajetória intelectual da autora açoriana seria ainda longa, diversa e profícua, marcada por um estilo que diferenciou-se, de modo original, da tradição literária portuguesa, “alternando ressonâncias lúdicas, e com uma imagística que funda as suas raízes em elementos românticos, surrealistas e barrocos” (CHAVES, 2004, 83). Em quase cinquenta anos de escrita, Natália Correia publicou 16 livros de poesia, 6 livros de ficção, 6 peças de teatro, 7 livros ensaísticos, escreveu 19 filmes e documentários para a televisão, além de organizar e prefaciar sete antologias sobre temas culturais e literários diversos, escrever para jornais e revistas e participar de inúmeras iniciativas nos campos literário e político português. A esta lista acrescentem-se múltiplos textos de gêneros distintos, reunidos a partir de seu espólio – depositado na Biblioteca Nacional de Portugal e na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada –, e publicados post mortem, assim como antologias poéticas indispensáveis aos estudos sobre a autora, como Poesia Completa: O Sol nas Noites e o Luar nos Dias. A constatação desta extensa e constante produção revela a forma como Natália Correia pensava sua prática literária: “a literatura não existe pela literatura, a literatura serve a vida e tem que recordar à vida aquilo de que ela está esquecida” (CORREIA, 1988, 10). De fato, literatura e vida integram de modo original o pensamento da autora açoriana, completadas pela dimensão mística-espiritual: “É preciso entender que o grande ideal de Natália vai para além do próprio mundo físico. Apela-se a uma reintegração cósmica não só do homem indivíduo, como do homem total, fundindo o visível com o invisível, o tempo histórico com o ancestral” (ALMEIDA, 2006, 23). É neste sentido, igualmente, que a ação cívico-política de Correia não se separa de sua prática poética e mística, construídas, primeiramente, sob a égide de um regime ditatorial, autoritário e moralmente conservador, e, em seguida, sob a tentativa de construção de uma democracia pós-ditatorial. Naquilo que toca, portanto, a importância da autora açoriana para a consciência histórica e o fortalecimento das práticas de direitos humanos, têm-se registros de sua atuação desde o começo da carreira literária, seja enquanto intelectual antifascista – sendo censurada, vigiada, perseguida e, até mesmo, julgada, seja no momento em que critica a radicalização revolucionária pós-1974, ou ainda em sua luta constante pela liberdade e pela democracia: “O meu envolvimento político nada tem a ver com o poder. Limito-me a cumprir uma responsabilidade que qualquer poeta digno deste nome assume na medida em que tem como finalidade transformar o mundo”, diria a autora em 1986 (apud ALMEIDA, 1993, 32).
Um primeiro registro desta participação cívico-política pode ser, então, assinalado ainda no ano de 1947, quando Natália Correia escreve artigos para Sol: Semanário de Estudo e Crítica dos Acontecimentos Internacionais, de A. Lello Portella, periódico político prestigioso, inaugurado em 1942 e encerrado pela censura, quando do falecimento de seu diretor. Com apenas 24 anos, Correia aí publica diversos artigos avulsos versando sobre os limites da soberania nacional, a defesa nacional americana, o cooperativismo, a crise política no Oriente-Médio e temas relativos à saúde, à técnica, entre outros. Destaca-se, no entanto, uma série de 11 textos, intitulada Breve História da Mulher, publicada em livro em 2003, com o mesmo título, pois esta inaugura temática que será retomada pela autora em outros momentos. De fato, Breve História da Mulher demonstra a busca de Natália Correia pela compreensão da história da condição feminina, evocando temáticas importantes para a sociedade e os direitos humanos, como o contexto da escravidão, a influência da religião, as diferenças culturais e nacionais e a questão da emancipação da mulher. Nos anos 1950, a autora assumiria uma vertente rebelde no papel da personagem da Feiticeira Cotovia, e em 1968, ano do desaparecimento de António de Oliveira Salazar da cena política portuguesa, a autora açoriana publica o livro Mátria, rito de iniciação mística que proclama a existência de uma componente feminina fundamental na história de Portugal e do mundo e denuncia sua repressão junto à sociedade (ALMEIDA, 1994, 51). O tema será retomado ainda outras vezes, como no momento da escrita da série televisiva Mátria, realizada por Dórdio Guimarães nos anos 1980. A produção de Natália Correia dialoga, deste modo, com os diversos feminismos a nível europeu e internacional, especialmente aqueles voltados para a exaltação do feminino como arma política contra as sociedades patriarcais. Natália Correia reforça, assim, sua crítica pública ao conservadorismo da moral salazarista, posição que ela assumirá novamente em 1972, quando aceita editar as Novas Cartas Portuguesas, livro censurado, que marca o processo de decadência da ditadura em Portugal. O engajamento da autora açoriana em uma revolução através do feminino será ainda demonstrado pela atuação junto a encontros e movimentos de mulheres durante a democracia, sem que uma filiação feminista específica seja proclamada. Para além disso, seu trabalho na Assembleia da República nos anos seguintes foi marcado pela atuação em defesa da despenalização do aborto, assim como pelo apoio à candidatura de Maria de Lurdes Pintassilgo ao cargo de primeira-ministra. Deste modo, percebe-se que a compreensão histórica da condição feminina, assim como o conhecimento sobre os movimentos de mulheres e feministas, e a luta pela igualdade e pela emancipação das mulheres, foram algumas de mais importantes contribuições de Natália Correia à luta pelos direitos humanos em Portugal.
Um segundo aspecto desta contribuição, tanto em Portugal como em diálogo com o exterior, dá-se pela luta antifascista que Natália Correia encampa a nível político e literário. É neste sentido que a autora açoriana, a pedido do intelectual da oposição, António Sérgio, procura, sem sucesso, aliados para a luta antifascista, quando viaja aos Estados Unidos em 1950. Mesmo sem encontrar o apoio desejado, a mobilização da autora contra a ditadura continua, seja através da organização de tertúlias político-literárias junto ao marido, Alfredo Lage Machado, seja apoiando a candidatura oposicionista do general Humberto Delgado, em 1958, momento de crise do regime e de início de movimentos clandestinos pró-independência nas colônias em África. No mesmo ano, Natália Correia publica os poemas que compõem Comunicação, o primeiro de seus livros a ser censurado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), sob o argumento de que “a sensualidade, a libertinagem e a falta de senso moral bem verificados, levam sem sombra de dúvida, a não autorizar a sua circulação” (AZEVEDO 1997, 111). É o início de um longo dossiê sobre Natália Correia junto à polícia política portuguesa, que ainda censurará seu trabalho editorial e a levará ao tribunal por conta da publicação da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica em 1966, acusado de ser “contribuição comunista para comemorações bocageanas”. Anos depois, a autora falará sobre a inibição literária provocada e desejada pela censura, que “nela estruturalmente se introduz, forçando-a ao ardil, ao estratagema gramatical, à dolorosa abdicação da autenticidade” (CORREIA, 1982, 287). Por outro lado, o direito do ser humano à livre expressão de suas ideias, proibido pela ditadura de Salazar, encontra em Natália Correia uma resistência política e estética constante. Mas outros mecanismos de cerceamento da liberdade de expressão e, principalmente, de comunicação, também são denunciados pela autora açoriana, como, por exemplo, o cerco econômico, que prejudica, mesmo em tempos democráticos, os equipamentos difusores da literatura e da cultura. De fato, a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, inaugura um período de término da censura política, mas de aprofundamento da crise económica. Natália Correia denuncia, neste sentido, os “‘subalimentados do sonho’ e a fome de poesia, decretando que este alimento e a sua ausência deveriam ser colocados na agenda política, como um programa para revitalizar o espírito individual e colectivo, para a construção de uma sociedade mais dinâmica, mais criativa e menos monótona” (FRANCO, 2019, 12). A defesa da literatura ilustra, assim, a atuação de Natália Correia na Assembleia da República, marcada por “intervenções na área da política cultural, pela exaltação dos valores da criação artística, pela defesa dos direitos humanos, da paz e da igualdade de direitos” (Catálogo, 2003, 10). Um elemento original a mais nesta atuação é o fato de fazê-la através da própria literatura, como demonstram seus Poemas Parlamentares 1980-1984 (espólio de Natália Correia – BNP), em que assuntos debatidos na Assembleia dão lugar a uma fala satírica, crítica e combativa, marcada pela poesia. Ainda na conjuntura dos anos revolucionários, Natália Correia envolve-se na discussão sobre o Estatuto para a Autonomia de sua terra natal, os Açores, a qual defende junto ao Governo Central em 1977, “a fim de que [este] resolva entender a filosofia do independentismo” açoriano (ALMEIDA, 1994, 60). Natália será, inclusive, responsável pela escrita do hino de sua terra natal. Em paralelo, a escritora açoriana concentra o debate intelectual português em torno do Botequim, propriedade que cria com Isabel Meyrelles em 1971, em Lisboa. É este um espaço de afirmação da liberdade, de performances literária e artística e de perversão da ordem ditatorial, frequentado amplamente pela elite intelectual portuguesa da época. Após o 25 de Abril, o Botequim recebe militares e políticos revolucionários que estiveram à frente do Governo nas décadas seguintes e torna-se um centro de discussões políticas na capital. Mas a atuação de Natália Correia não se limita à acolhida dos representantes da revolução; ela participa do debate e escreve assiduamente em jornais como A Capital, colocando em questão os rumos revolucionários, manifestando sua decepção com o caráter hipócrita do movimento, posição cuja síntese aparecerá em seu livro Não Percas a Rosa, de 1978. Aqui também, a autora açoriana sofrerá censura, não mais por órgãos oficiais, mas por seus próprios colegas intelectuais. Ainda assim, a participação política da autora é múltipla, dada através da continuação das atividades no Botequim, da escrita e direção de séries e filmes televisivos sobre a história e a cultura portuguesas e, notadamente, pela presença na Assembleia da República a partir de 1979, conservando sua posição política independente. Em 1988, Natália Correia faria um discurso memorável por conta do aniversário da proclamação Universal dos Direitos do Homem, em que menciona o racismo, a fome, a tortura, os regimes despóticos e a censura, e se solidariza com o “genocídio infligido ao povo do Timor-Leste” em seu processo de independência da ocupação indonesiana. No entanto, neste mesmo discurso, a autora proclama a necessidade de contrapor à “hegemonia da uniformidade o direito à diferença como condição de rehumanização” da sociedade. Sua atuação em prol dos direitos humaos manifesta-se ainda em 1990, durante a Guerra do Golfo (1990-1991), quando a autora cumpre atividades diplomáticas a fim de repatriar portugueses reféns do Governo iraquiano, e dar assistência às suas famílias.
Natália Correia recebe diversos prémios nesta época, inclusive da mão de presidentes, como a Ordem Militar de Santiago da Espada (1981), entregue por Ramalho Eanes, ou a Ordem da Liberdade (1991), concedida a Natália por Mário Soares. Antes de seu falecimento, a autora açoriana criaria a Frente Nacional para a Defesa da Cultura (1992), em parte para se contrapor à adesão de Portugal à Comunidade Europeia e no sentido de afirmar os valores da cultura portuguesa. Finalmente, cabe destacar que a atuação de Natália Correia no tocante à defesa dos direitos humanos ultrapassa sua própria existência. Neste sentido, o acervo dos debates parlamentares da Assembleia portuguesa ilustra esta afimação, uma vez que apresenta centenas de referências de deputadas e deputados que, até hoje, citam a autora açoriana como exemplo de trajetória política e intelectual, reproduzindo poemas e falas suas em defesa da liberdade e da democracia.
Bibliografia
ALMEIDA, A. (1994). Retrato de Natália Correia. Lisboa: Círculo de Leitores.
AZEVEDO, C. de (1997). Mutiladas e Proibidas: Para a História da Censura Literária em Portugal nos Tempos do Estado Novo. Lisboa: Editorial Caminho.
Catálogo da Exposição “Natália Correia” (2003). Livraria Parlamentar da Assembleia da República, maio-junho.
CHAVES, J. A. G. de (2004). “Natália Correia e a pós-modernidade”. Vértice, 119, 83-103.
CORREIA, N. (1982). “Da censura política ao cerco económico da literatura”. In II Congresso dos Escritores Portugueses (287-289). Lisboa: Edição da Associação Portuguesa de Escritores/Publicações Dom Quixote.
CORREIA, N. (1988, 23 de dezembro). “Sobre a Proclamação Universal dos Direitos do Homem”. Diário da Assembleia da República, I Série, n.° 22, 809-810.
CORREIA, N. (2003). Breve História da Mulher e Outros Escritos. Lisboa: Parceria A. M. Pereira.
“Entrevista com Natália Correia” (1988, 5 de novembro). Fim de Semana, o Diário Cultural, 10.
FLORES, C. et al. (2009). Dicionário de Escritoras Portuguesas. Santa Catarina: Editora Mulheres.
SARAIVA, A. J. & LOPES, O. (1996). História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora.
Autora: Natália Guerellus