Cosmopolitismo [Dicionário Global]
Cosmopolitismo [Dicionário Global]
Etimologicamente, aquilo que é próprio, ou comum, a todas as polis; trata-se de um termo composto do grego, mas de sentido moderno. Se as cidades antigas da Magna Grécia coincidiam em alguns aspetos comuns que as distinguiam dos não gregos (nomeadamente a língua), a sua lógica de relacionamento face aos outros (e mesmo mutuamente) era ainda de exclusão, podendo quando muito falar-se de um cosmopolitismo limitado ou, alternativamente, num cosmopolitismo sobretudo ideal (de cunho filosófico, esse ideal foi sobretudo estoico). Na sua aceção pertinente para a História e Teoria dos Direitos Humanos, o termo adquire sentido na modernidade, sobretudo a partir do estabelecimento de uma ordem social (antes mesmo que política e jurídica) que associa e por vezes até confunde o sentido do ideal cosmopolita ao universalismo (ver entrada) característico dos direitos humanos.
Se o universalismo é uma questão metodológica da maior relevância para a integridade do estatuto jurídico dos direitos humanos, o cosmopolitismo desenvolve-se sobretudo a partir do século XVIII como expressão máxima da dignidade (laica) do ser humano concreto na modernidade. Trata-se de um conceito muito mais claramente operativo, definidor da realidade social (cultural, ética, político-jurídica) do indivíduo, que, mesmo que não rejeite a sua pertença étnica, religiosa, nacional, se concebe primordialmente pela sua condição de ser humano, sentindo-se igualmente em casa em diversas paragens (idealmente, todas), desde que nelas seja respeitado tal como é.
Esta característica moderna encontra-se patente já na Literatura sobre o tema no século XVIII, quer explicitamente (Shaftesbury) quer implicitamente (Wollstonecraft). Seja no elogio do grand tour, pela positiva, seja na crítica à permanência de costumes “góticos”, essa marca de cosmopolitismo é nitidamente moderna e antecipa “a” Revolução dos Direitos do Homem de 1789. Na Encyclopédie (vol. 4, de 1754), o termo objeto de entrada é “cosmpolitain ou cosmopolite” – ainda o sujeito e não tanto a perspetiva. Artigo breve, focando o comportamento pessoal mais do que uma teorização, identifica o termo como “elogioso” para o sujeito que valoriza o Humano sobre o particular. Evoca o passado Antigo (grego) e termina com uma remissão para esse artigo central da Encyclopédie que é “philosophe”. Remissão pertinente, pois o termo “filósofo” tem uma história ininterrupta que recobre o sentido cosmopolita em muitos aspetos, enquanto o termo “cosmopolita” tem pergaminhos bem mais incertos e esparsos.
Metodologicamente, podemos argumentar que apenas se torna possível autonomizar a figura do cosmopolita face à do filósofo quando se produzem certas condições sociais inexistentes até ao apogeu das Luzes: a formação de uma sociedade civil autónoma do Estado e capaz de influenciar este, tanto informal como legalmente; um sistema de relações entre Estados que formata as possibilidades dos indivíduos face ao exterior do “seu” Estado; o triunfo das línguas vernaculares sobre o latim, mesmo na Literatura, em sentido forte; a exploração do mundo concebida já não apenas pela necessidade mas pelo prazer e pela curiosidade intelectual; um avanço científico generalizado, com uma expressão naturalista muito vincada, “igualizando” as diversas polis enquanto experiências humanas de igual dignidade e interesse (aproximadamente, pelo menos); o gosto genuíno pelo outro, pelo distante e estranho, possível com a afirmação de uma mentalidade laica; um início de progresso no sentido da igualdade entre sexos e condições sociais. Tudo isto veio possibilitar o “cosmopolitismo” enquanto movimento e não apenas enquanto indivíduo, tudo isto permitiu a sua distinção do “filósofo”, cuja aura empalidecia progressivamente com o avanço material dos progressos técnicos, através de uma especialização cada vez mais compartimentada dos saberes.
Também o pensamento de tendência cosmopolita participou dessa especialização do saber, sendo frequentemente associado (e com razão) ao desenvolvimento da Economia moderna, assente no comércio livre e na especialização da produção. Disciplina moderna e iluminista por excelência, a economia (política) constitui-se como palco das discussões maiores da época e é sem espanto que a defesa do comércio livre como caminho para a paz universal se desenvolva neste mesmo período, coincidente com a afirmação plena do ideário dos direitos humanos. A tese de que entre nações que mantêm trocas comerciais não há guerras, pois há mais a perder do que a ganhar, é enformada pela pré-condição, demasiadas vezes esquecida, de que ambos os lados devem valorizar o mesmo critério de julgamento (no caso, a prosperidade económica em paz), e não manter critérios divergentes e, possivelmente, até opostos (não são trocas comerciais vultuosas que impedem uma ditadura de atacar uma democracia, conforme numerosos exemplos históricos documentam). Conforme sabia Adam Smith, a economia é uma ciência social (logo, moral).
Contemporaneamente, o termo convive de forma ambivalente com culto do particular e do singular próprio da digitalização da experiência humana (de novo, no expoente máximo da modernidade), mantendo um estatuto de buzzword (quem pode ser contra o cosmopolitismo sem ser anti-moderno?); é uma espécie de universalismo de facto, sem foco na doutrinação (se assim se lhe pode chamar), fazendo a sua propaganda pelo exemplo (na realidade desintegrada atual, o grand tour talvez ecoe no tráfego dos frequent flyers, vencedores da globalização).
Enquanto conceito operativo hoje, cosmopolitismo reporta mais a uma experiência de cidadania (até de urbanidade) do que à dignidade intrínseca dos direitos humanos e suas condições. Nessa medida, dispensa grande sofisticação teórica e privilegia a comparabilidade e a comunidade de experiências modernas.
Bibliografia
DIDEROT & D’ALEMBERT (1754). “Cosmopolitain, ou Cosmopolite”. In Encyclopédie, ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers (297). (t. IV). Paris: Chez Briasson/David/Le Breton/Durand.
Autor: Carlos Leone