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    Dança [Dicionário Global]

    A dança pode ser considerada como uma das mais antigas atividades humanas. Ao longo de sua existência é reconhecida e apreciada pela capacidade de integrar uma diversidade de saberes e manifestações em um mesmo fenómeno. A presença da dança em cada cultura, em diferentes contextos e com ilimitadas possibilidades de significados, caracteriza sua amplitude e multiplicidade bem como a diversidade de suas formas, movimentos e gestos. Quando considerada sob a ótica dos direitos humanos, é reconhecida como um lugar de identidade, comunicação, expressão, liberdade, luta e resistência, mesmo que estes não estejam postos como seus fins.

    Os estudos sobre a dança evidenciam sua abrangência e complexidade. Também indicam que todo o movimento de ruturas e de incorporação de novos saberes e fazeres aos seus processos de criação propiciaram o desenvolvimento de diferentes reflexões, quer no campo prático quer no campo investigativo, interferindo na compreensão do que venha a ser esse fenómeno na contemporaneidade e seu papel na promoção do direito das pessoas (FRALEIGH & HANSTEIN, 1999).

    Hoje, a dança pode ser compreendida como um fenómeno complexo, imanente, uma vez que só se estabelece no momento de sua realização, mas que transcende a fisicalidade daquele que a realiza. Cria subjetividades e revela a essência e a existência de cada um, de todos e de todas. Tem no corpo em movimento o mediador das interações com o mundo, organiza-se como um modo de conhecimento específico, em que cada gesto implica diretamente o sujeito, não sendo possível dispor de sua presença.

    Diversa, singular e plural, a dança promove estesias, estabelece diálogos e percorre territórios, possibilitando a geração de novos sistemas de organização dos corpos em movimento e suas relações com o espaço, o tempo e as pessoas. A memória do corpo é constantemente solicitada bem como sua capacidade de criar devires, o que estimula um fluxo dinâmico de informações, que transitam entre o antes e o depois, sustentando-se no agora (LOUPPE, 2000).

    A reflexão sobre a dança parte da premissa desta constituir um espaço onde circulam as experiências, potencialidades e virtualidades do ser humano. Neste espaço, o corpo de quem dança materializa a subjetividade presente em seu fazer, bem como torna explicitas as tensões estabelecidas em seu processo de interação com o ambiente, com os outros e consigo mesmo. Assim, ao ser produzido o movimento em dança, aquele que o faz torna-se agente na produção de sentidos e partilha-o entre quem o realiza e também entre quem o observa no instante em que explicita e presentifica, com seu corpo, as particularidades presentes em cada momento da experimentação, utilização e representação deste fenómeno (MORTARI, 2013).

    Desde que se tem registos, a dança se apresenta não apenas como expressão artística, física, concreta, mas como uma manifestação profunda das dinâmicas humanas, variando em forma, propósito e significado. Vianna (1990) acredita ser a dança um modo de existir e denuncia o facto desta, em determinados períodos da história, ser guiada pela obediência às regras e convenções relativas a um ideal estético predeterminado. No entanto, também com a dança foi possível desenvolver ações de transposições do já estabelecido e de transgressões criativas, tornando-se esta um veículo de contestação por parte daqueles que ousavam criticar e propor novas formas de ver e se relacionar com as artes, com os indivíduos e com o mundo (LACINCE & NÓBREGA, 2010).

    O certo é que cada período histórico é possuidor de sua própria perspetiva de conceber, entender e praticar a dança. Esta diversidade de conceções, entendimentos e práticas possui em comum a aceitação de ser este fenómeno um aglutinador das transformações humanas, de suas crenças e de seus valores. Assim, ao identificar os diferentes protagonismos da dança ao longo da história, percebe-se que estão diretamente relacionados com as transformações culturais, sociais e espirituais das sociedades e de seus membros.

    O cruzamento de saberes, a possibilidade do devir corpo, faz parte de sua essência, como também o faz a memória presente em cada gesto, em cada nova ação. O novo é criado por meio do questionamento do próprio dançar. Neste sentido, pode ser compreendido como projetivo. Tem-se na presença da incerteza, do não saber, o estímulo ao desenvolvimento de novas propostas, de tudo o que pode vir a ser (LOUPPE, 2000).

    Assume-se aqui a dificuldade em referenciar a dança por meio de uma evolução cronológica, pois acredita-se que esta não deva ser vista como linear. No entanto, é necessário reconhecer algumas de suas características que permitiram, ao longo do tempo, desvelar suas vivências e experiências, de modo a perceber a emergência de suas complexidades.

    Nas comunidades antigas, embora a dança fosse predominantemente uma prática instintiva e espontânea, continha uma importância genuína e utilitária. Ligada à religiosidade e à socialização, a dança desempenhava um papel central na comunidade, sendo difícil determinar se seus movimentos possuíam uma intenção estética ou se se destinavam puramente à comunicação e interação social. Nesse período, era possível conceber a dança como um poderoso instrumento de influência e coesão entre os membros de suas comunidades.

    Com a ascensão da cultura helênica clássica, a dança continuou associada à celebração da liberdade e expressão do homem livre. Platão concebia a dança como meio de promover a harmonia entre o corpo e o espírito, integrando-a à educação das crianças. A dança, nesse contexto, era acessível a todos os cidadãos, perdendo seu caráter educativo apenas com o declínio da cultura grega, quando então se voltou para o entretenimento.

    O período romano introduziu mudanças significativas na perceção da dança. Enquanto os gregos viviam a dança como uma exaltação da vida e reafirmação de seus valores, os romanos a transformaram em fonte de entretenimento, priorizando o prazer imediato em detrimento da expressão artística.

    A Idade Média viu a dança e o corpo serem ainda mais desvalorizados, sob a influência do Cristianismo puritano, com o corpo sendo considerado o “poço dos pecados”, e a dança uma prática a ser reprimida. A domesticação do movimento visava manter o corpo subjugado. Foi um momento de privação das liberdades e das manifestações expressivas naturais.

    A Renascença marcou um resgate da dança e do corpo, celebrando a vivência comunitária e a experimentação. A dança ressurgiu como uma expressão popular e também se desenvolveu no ambiente aristocrático, embora com características distintas em cada contexto.

    A transição para a Modernidade viu a dança se tornar cada vez mais técnica e estilizada. No entanto, o ballet romântico do século XIX, alinhado aos ideais da época, priorizava temáticas distantes da expressão da vida cotidiana. Em finais do século XIX e início do século XX, uma nova mudança se desenhou com a busca por ações que articulassem mais as questões do ser, priorizando a singularidade dos corpos em movimento de dança. Pioneiros como François Delsarte, Èmile Jaques-Dalcroze e Isadora Duncan, entre outros, iniciaram uma fase de experimentação que expandiu as possibilidades da dança, reafirmando-a como um veículo de expressão humana rica e multifacetada. Ao final deste mesmo século e início do século XXI, o conceito e as perceções sobre a dança expandiram-se enormemente, abrangendo uma diversidade de estilos, gêneros e práticas. Toda manifestação foi aceita, bem como seus movimentos e propósitos. As novas tecnologias facilitaram a troca intercultural e promoveram novas formas de experimentação e expressão deste fenómeno. Nesta perspetiva, a dança se tornou um meio importante de questionamento social, político e de reconhecimento de diferentes identidades, estimulando reflexões sobre questões atuais, tanto locais quanto globais. A dança pode assim ser vista, analisada e entendida como possuidora de diferentes estilos e géneros e será mais bem compreendida quando inserida em seu contexto histórico e social (ADSHEAD et al., 1988).

    Em Portugal, o movimento da Nova Dança, emergido nas últimas décadas do século XX, representou uma rutura significativa com as formas tradicionais que até então eram utilizadas, o que marcou o início de uma era de experimentação e inovação. Este movimento foi caracterizado por uma busca intensa pela identidade nacional na dança, enquanto se mantinha aberto a influências e colaborações internacionais, refletindo uma vontade de dialogar com a cena artística global. Para os seus integrantes, havia um forte desejo de explorar e questionar a identidade, tanto individual quanto coletiva, através do movimento. O corpo apresentava-se desnudo de toda repressão à liberdade e indicava, por meio de sua plasticidade, sua capacidade de incorporação do mundo externo e a possibilidade de criar espaços expressivos diversificados, em que suas dramaturgias reorganizavam formas de relacionarem-se com o espaço, o tempo e as próprias energias orgânicas. Esse processo possibilitou o desenvolvimento de novas referências para a dança, para o pensamento e para a vida, despertou a aceitação do outro, do diferente, da diversidade presente nos mais distintos contextos. Desde então, a dança é concebida como uma expressão de humanidade, lugar de liberdade, capaz de transcender barreiras e unir pessoas em torno de causas comuns.

    A dança, assim, pode ser aceita como a personificação do direito de ser em essência: ser quem se é, ser cultura, ser arte, ser sociedade, ser com o outro. Permite aos seus adeptos viver a singularidade na pluralidade, valorizar o individual no fazer coletivo, promover o respeito, desenvolver a alteridade, tornar-se pertença a um lugar, a uma sociedade, a uma cultura.

    Esta relação intrínseca com a promoção dos direitos humanos evidencia como este fenómeno pode ser uma força motriz para a conscientização, o diálogo e a mudança social.

    O movimento de dança, ao possibilitar o direito de expressar, falar, promover a escuta, ver e ser visto, aceita que cada indivíduo é possuidor de uma dança singular, fruto de um movimento que lhe é próprio e de relações que lhes são particulares. São estas particularidades que explicitam este dançar como um processo contínuo de construção e de relação do ser consigo e com seu mundo. Assim, a dança aproxima-se mais da ação, do processo, do que do objeto resultante desta, sendo mesmo considerada uma forma humana de existir, que se refaz continuamente (GEHRES, 2001).

    Conceber a dança como um lugar de expressão de identidades e de liberdade é estimular e aceitar que diferentes pessoas de diferentes origens e culturas possam conviver em harmonia a explicitarem, por meio de suas danças, suas características, suas formas de ver e reconhecer o mundo, o outro e, assim, celebrem as suas vidas. É ainda viabilizar que suas narrativas corporais habitem espaços que lhes permitam contar suas histórias, destacar injustiças sociais, provocar empatia e desenvolver pensamentos de alteridade.

    Grupos de danças e artistas em todo o mundo, mesmo com dificuldades e, por vezes, com falta de reconhecimento, continuam a utilizar suas performances para abordar questões como desigualdade, discriminação, violência e direitos das minorias, consolidando a dança como um lugar de diálogo e reflexão, de denúncia e resistência. Demonstram como a arte pode ser inclusiva, pode oferecer voz e visibilidade aos marginalizados, aos oprimidos, e pode contribuir na melhoria do bem-estar das pessoas além de colaborar para o fortalecimento de comunidades de modo a garantir a compreensão, o respeito e a dignidade a todos.

    Essa capacidade de sensibilizar faz da dança um contributo valioso na luta pelos direitos humanos. Todo ser humano procura para além de ser visto e compreendido, entrar em contato, estabelecer relação, se fazer pertença, “a dança nasce dessa necessidade de dizer o indizível, de conhecer o desconhecido, de estar em relação com o outro” (BÉJART, 1980, 8).

    Bibliografia

    ADSHEAD, J. et al. (1988). Dance Analysis: Theory and Practice. London: Dance Books.

    BÉJART, M. (1980). “Prefácio”. In R. Garaudy, Dançar a Vida (7-10). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

    FRALEIGH, S. H. & HANSTEIN, P. (1999). Researching Dance: Envolving Modes of Inquiry. Pittsburgh: University of Pittisburgh Press.

    GEHRES, A. (2001). Corpo – Dança: Educação na Contemporaneidade ou da Construcção de Corpos Fractais. Dissertação de Doutoramento em Motricidade Humana na especialidade de Dança apresentada à Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, texto policopiado.

    LACINCE, N. & NÓBREGA, T. P. (2010). “Corpo, dança e criação: Conceitos em movimento”. Movimento, 16 (3), 241-258.

    LOUPPE, L. (2000). Poétique de la Danse Contemporaine. Paris: Contredanse.

    MORTARI, K. (2013). A Compreensão do Corpo na Dança: Um Olhar para a Contemporaneidade. Dissertação de Doutoramento em Motricidade Humana na especialidade de Dança apresentada à Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, texto policopiado.

    SIQUEIRA, D. (2006). Corpo, Comunicação e Cultura: A Dança Contemporânea em Cena. Campinas: Autores Associados.

    VIANNA, K. (1990). A Dança. São Paulo: Siciliano.

    Autora: Katia S M Mortari

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