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    Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão [Dicionário Global]

    A proclamação e a aceitação do princípio dos direitos do Homem foram precedidas por um longo e acidentado processo de amadurecimento, desde a elaboração do direito natural e da dignidade da pessoa até à consciencialização política do poder do povo e da sua prevalência sobre a tradicional soberania absoluta dos monarcas. Compreende-se, por isso, que a sua afirmação solene se tenha dado em contexto revolucionário. Sem consciência e vontade de pertença ao Estado-nação organizado segundo a ordem democrática não haveria um sujeito efetivo para enunciar e dar sentido aos direitos do Homem e do cidadão. Declarados e aceites em democracia, o vocabulário que os verbaliza está longe de ser unívoco. Basta lembrar a multiplicidade de interpretações atribuídas à liberdade, com sentidos tão diversos quanto as doutrinas filosóficas que a enquadram ou as aplicações que dela se fazem.

    A rutura revolucionária inerente à liberdade e igualdade estabelecidas como direitos humanos estende-se muito para lá da rejeição do Estado absoluto. Corta pela raiz a organização tradicional da sociedade enquanto corpo social composto e estratificado segundo ordens e hierarquias, e institui uma sociedade de iguais perante a lei. Mais ainda, consagra o processo de secularização e laicização da vida civil, abatendo o poder da Igreja nas estruturas da existência social e do Estado.

    A primeira grande proclamação revolucionária dos direitos fundamentais ocorreu no quadro da insurreição das colónias americanas contra a soberania opressiva que sobre elas exercia a metrópole britânica. No Congresso reunido em Filadélfia, no dia 4 de julho de 1776, os representantes da população colonial revoltada contra o colonizador inglês justificam assim o seu propósito de libertação: “Temos como evidentes por si mesmas estas verdades: que todos os homens nascem iguais, que o Criador os dotou de direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade, e a procura da felicidade”.

    Em matéria de direitos humanos, a Declaração de Independência dos Estados Unidos serviu de prólogo à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa, a 26 de agosto de 1789. No calor da revolução, o texto da Declaração foi objeto de críticas, tendo ainda dado origem a mais duas declarações, em 1793 e 1795, respetivamente. Isso não obstou a que a formulação de 1789 tenha prevalecido como documento inspirador em numerosos Estados da Europa e da América Latina. A redação do texto teve o contributo de vários revolucionários. Quanto ao preâmbulo, foi redigido por Mirabeau e Jean-Joseph Mounier, adeptos ambos do modelo inglês de monarquia constitucional. Convocados os Estados Gerais, a Assembleia do Terceiro Estado, reunida em Versalhes, decidiu assumir-se como Assembleia Nacional. Esta, em reunião das três ordens, no dia 17 de junho de 1789, tomou a iniciativa de abolir o sistema de ordens. A eliminação da sociedade de ordens ficou consagrada no art. 1.º da Declaração, que diz: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem fundar-se senão na utilidade comum”. Em ordem à elaboração do texto constitucional, que ficaria concluído em 1791, a Assembleia Nacional adotou o estatuto de Assembleia Constituinte. Com a decisiva passagem de sociedade de deveres a sociedade de direitos, de sociedade de súbditos a sociedade de cidadãos, Jules Michelet vai chamar com razão à Declaração de 1789 “o credo de uma Nova Idade”.

    As declarações setecentistas tiveram consequências determinantes para as políticas posteriores. Os princípios de liberdade e de soberania do povo converteram-se em alicerce sobre o qual se edificaram os regimes liberais e produziram progressos na consciencialização dos direitos humanos traduzidos na afirmação de novos direitos e novas declarações. A Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada em Paris pela Assembleia Geral da ONU, no dia 10 de dezembro de 1948, marca o compromisso de atualizar e expandir o conjunto jurídico já adquirido, alargando, através de tratados e convenções internacionais, o corpo de direitos, relativos nomeadamente à não discriminação racial (1966), à não discriminação das mulheres (1979) e aos direitos da criança (1989) e das pessoas com deficiência (2006). A ideia de direitos humanos consagrada na Declaração Universal de 1948 transporta o sedimento tradicional dos direitos naturais identificados pelo jusnaturalismo e o dos direitos de cidadania reivindicados no interior dos Estados a partir da filosofia política seiscentista e setecentista, em particular de Locke, Montesquieu e Rousseau. Veja-se no art. 16.º a regra da separação de poderes e no art. 6.º a referência à vontade geral de que a lei é expressão. A universalidade que os direitos humanos possuem consiste em se aplicarem a todos os seres humanos tendo por fundamento apenas a sua humanidade. A 15 de março de 2006, a Assembleia Geral das Nações Unidas instituiu o Conselho de Direitos Humanos. Este Conselho é constituído por representantes dos Estados-Membros. Tem como objetivo promover e proteger o respeito e cumprimento dos direitos em todos os povos e nações.

    Ao contrário do que acontecia nas declarações do século XVIII, a Declaração Universal de 1948 não integra qualquer referência a bases de fundamentação para além ou acima da estrita humanidade. Na Declaração de 1776, menciona-se Deus criador, e na de 1789 está presente o Ser Supremo sob cujos auspícios são declarados os direitos do Homem e do cidadão. Todavia, enquanto na Declaração americana Deus aparece como origem da lei natural da qual dependem os direitos naturais, na Declaração francesa não se menciona a lei natural e os direitos têm por autor a vontade geral da nação manifestada pelos “representantes do povo francês constituídos em Assembleia Nacional”. Além disso, na Declaração de 1789 estão enunciados “os direitos naturais do homem, inalienáveis e sagrados” e, juntamente com eles, os direitos políticos e os direitos civis do cidadão. Verifica-se aqui o carácter próprio do direito natural moderno. Neste, “o direto natural está articulado sobre fundamentos racionais autónomos e laicos e separado da lei natural” (BARRET-KRIEGEL, 1989, 54).

    Afirmar a universalidade dos direitos humanos não significa que eles sejam reconhecidos, aceites e adotados por todos os povos nem que nas sociedades que com eles se identificam todos os indivíduos possuam o conhecimento adequado do que eles são e exigem. Daí que a sua pedagogia continue a ser, na atualidade, tarefa fundamental na educação do homem e do cidadão, à semelhança do que já era preocupação dos autores das primeiras declarações. Estava nelas em causa a criação de uma consciência comum da existência democrática. A alfabetização e a instrução pública, tão defendidas pelos filósofos das Luzes, deviam proporcionar o conhecimento e respeito das leis, fonte de harmonia e felicidade na existência individual e social dos cidadãos. Também na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) está expressamente indicada como dever de todos os indivíduos e órgãos da sociedade a pedagogia da dignidade humana, de cuja promoção são instrumento e salvaguarda os direitos do Homem. Urge que se tomem medidas nos planos nacional e internacional para que todos “se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades”. Só por essa via se pode criar entre os povos uma verdadeira cultura da dignidade humana que seja a fonte donde dimanam paz, harmonia e bem-estar para todos.

    Embora a efetiva adoção de princípios relativos aos direitos humanos só tenha ocorrido em Portugal após a instauração do constitucionalismo liberal, devemos registar que, desde longa data, existiram alguns passos nessa direção. O Padre António Vieira (1608-1697) ocupa lugar eminente como precursor dos direitos humanos. Nenhum outro propugnador da dignidade da pessoa militou em tantas frentes em sua defesa. Protegeu os índios, combateu a escravatura, defendeu o fim da denominação e discriminação de cristãos-novos e cristãos-velhos, enfrentou a máquina inquisitorial até conseguir que Roma a suspendesse, ensinou que os homens são iguais por natureza e que, em matéria de cor de pele, “cada um é da cor do seu coração”.

    Foi, porém, com a Revolução Liberal de 1820 que começaram a ter expressão política, em Portugal, as ideias revolucionárias contidas nos artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Assiste-se mesmo a alguma inovação lexical, dado o uso frequente do vocábulo “regeneração” para sintetizar o duplo propósito de cortar com o passado e instaurar uma sociedade nova no Portugal renascido. Entre outras coisas, impunha-se a criação de novas estruturas jurídicas, garantia de existência política, económica e social conforme aos princípios de liberdade, igualdade e soberania do povo. As Cortes Extraordinárias Constituintes incumbidas de formular a primeira Constituição da Nação Portuguesa afirmam, no seu preâmbulo, que estão “intimamente convencidas de que as desgraças públicas que tanto a têm oprimido e ainda oprimem, tiveram sua origem no desprezo dos direitos do cidadão”. Já antes, nas Bases da Constituição (1821), se realçava a importância dos direitos individuais. É por isso que a Constituição de 1822 os incorpora no seu título I, chamado “Dos direitos e deveres individuais dos Portugueses”, e consagra, sem rodeios, os direitos do cidadão, isto é a liberdade, a segurança pessoal, a propriedade e a igualdade perante a lei. E afirma, no seu art. 26.º que “a soberania reside essencialmente em a Nação. Não pode, porém, ser exercida senão pelos seus representantes legalmente eleitos.” Ainda que a vigência desta Constituição tenha sido curta, os princípios fundamentais nela contidos acabaram por vingar no regime liberal de monarquia constitucional.

    Foi particularmente intenso e fecundo o eco da Declaração de 1789 na reflexão política e jurídica de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846). Filósofo e político com vasta carreira em Portugal, Brasil e também em Londres, Berlim e Paris, elaborou uma importante Declaração dos Direitos e Deveres do Homem e do Cidadão, publicada em Paris, no ano de 1836. O título transcende com oportunidade a reserva com que foram recebidas as declarações anteriores que explicitamente mencionavam apenas os direitos. A referência a deveres em conexão com direitos socializa o sentido de responsabilidade inerente ao sujeito dos direitos naturais, políticos e civis. Direitos e deveres existem como garantia da fruição do bem comum por todos e cada um dos seres humanos. Pinheiro Ferreira enumera como direitos naturais os três seguintes: liberdade, segurança e propriedade, competindo à lei fundamental do Estado assegurar a todos os cidadãos o seu cumprimento. Da universalidade desses direitos decorre a igualdade dos cidadãos, de tal modo que a lei fundamental exclui a existência de qualquer forma de privilégio. Registe-se que diferentemente do que sucede na Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) e na Declaração francesa de 1789, Pinheiro Ferreira não subordina os direitos naturais ao Criador nem ao Ser Supremo.

    Proclamar e promover os direitos humanos alimenta no espírito e no coração das gentes um ideal generoso que augura harmonia social, paz entre as nações e condições para o crescimento da prosperidade e bem-estar de todos. Infelizmente, a realidade quotidiana desmente não só a justa expectativa prometida pela afirmação dos direitos fundamentais, como exibe, em pleno século XXI, os progressos da barbárie, das injustiças e da desumanidade. A situação vivida por grande parte da população mundial é mesmo de escandalosa privação dos mais elementares direitos. Em vez de liberdade, a vida aprisionada por todas as formas de sujeição; em vez de igualdade, a divisão dos seres humanos em ricos, poderosos, exploradores, de um lado, e pobres, oprimidos e explorados, do outro; em vez de segurança, a violência cega de guerras fratricidas. Deste modo, o respeito dos direitos humanos e com ele a dignidade das pessoas converteu-se, com demasiada frequência, em pura miragem, cada vez mais perversamente virtual.

    No entanto, o facto de a humanidade se encontrar a distância abissal da execução e prática do ideal anunciado pelas várias declarações de direitos não prova que estes sejam de nula eficácia. Bem pelo contrário! Importa que a nobre utopia dos direitos humanos não deixe de difundir esse princípio dinamizador da consciência responsável do ser imperfeito, tantas vezes cruel, que é o Homem.

    Bibliografia

    ALVES-JESUS, S. M. (2023). Direitos Humanos em Portugal – História e Utopia. Das Origens à Época Contemporânea. Lisboa: AAFDL.

    BARRET-KRIEGEL, B. (1989). Les Droits de l’Homme et le Droit Naturel. Paris: PUF.

    BETHENCOURT, F. (2023). Direitos Humanos. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.

    BINOCHE, B. (1989). Critique des Droits de l’Homme. Paris: PUF.

    FRANCO, J. E. & FIOLHAIS, C. (dirs.) (2019). Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa (vol. 14). Lisboa: Círculo de Leitores.

    GROETHUYSEN, B. (1982). Philosophie de la Révolution Française Précédé de Montesquieu. Paris: Gallimard.

    MOURGEON, J. (1990). Les Droits de l’Homme (5.ª ed.). Paris: PUF.

    Autor: Luís Machado de Abreu

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