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  • Exílio [Dicionário Global]

    Exílio [Dicionário Global]

    Noção e caracteres

    Polissémica e muito fluída, a noção de exílio remete, no seu núcleo sémico mais estrito, para um apartamento, afastamento ou distanciamento, voluntário ou não, de um espaço, ambiente ou milieu e para a condição, estado ou estatuto dele resultante. Em torno deste eixo noemático, admite, porém, diversas especificações e variações combinatórias, consoante as causas, razões, motivos, sujeitos, modalidades e efeitos em apreço, a mais comum das quais aponta para a proscrição ou fuga de um território de pertença (maxime, a pátria), por razões políticas, religiosas, éticas, económicas ou étnicas, rumo a um lugar, mais ou menos determinado, em que se goza de um grau de liberdade muito variável, por um período de tempo (definido ou não), e em regra com uma conotação geral de pendor negativo.

    Na verdade, em termos tipológicos e historicamente repassados, o exílio contempla as hipóteses de banimento, estatuídas pelas autoridades, mas também de abandono ou partida, por iniciativa pessoal, nomeadamente em busca de refúgio (num arco que vai, portanto, da expulsão oficiosamente decretada e efetivada, à emigração, mais ou menos livre); traduz sobretudo uma expatriação, mas designa também desterros e confinamentos forçados no interior de um território, a exclusão e remoção de países de adoção, ou a experiência da apatridia; supõe uma deslocação física, mas é igualmente empregue a respeito de formas de alheamento social, ensimesmamento psíquico e transcensão filosófica; nomeia uma realidade que (quer normativa, quer apenas faticamente), pode ou não ser definitiva, temporalmente indeterminada, cumulada de outros gravames (perda de direitos, obrigação de trabalhos forçados) e restrita a uma destinação específica; reporta-se a sujeitos individuais (civis ou titulares de cargos de autoridade) mas estende-se ainda a coletivos (nações, povos ou governos), havendo alguns registos de excêntrica aplicação a animais e coisas materiais ou objetos físicos.

    À ambiguidade assim reconhecida, quer sincrónica, quer diacronicamente, soma-se uma indisfarçável ambivalência, cuja exploração, excedendo os presentes propósitos, pode apenas ser indiciada. Com efeito, juridicamente concebido, perspetivado ou modelado como sanção penal preventiva e/ou repressiva, mas também como direito ou faculdade (no âmbito substantivo ou processual), e ressaltando, assim, de normação, seja sancionatória, seja permissiva, o exílio não deixou igualmente de ser configurado como pura e simples transgressão ou facto ilícito (por violação de deveres civis, militares ou fiscais, e.g., enquanto relapsia ou contumácia, deserção ou evasão fiscal). Como tal, de há muito se presta a interpretações desencontradas, mais ou menos favoráveis, mesmo no primeiro caso: consoante o suposto gravame da pena fosse atenuado pelas circunstâncias concretas da sua efetivação, mitigado pela comparação vantajosa com penas mais pesadas e até contrariado por razões pragmáticas ou de princípio, que subvertiam os pressupostos e efeitos do castigo supostamente infligido, alterando, portanto, a perceção deste.

    Concomitantemente, elevado a condição ontológica de ex-ito e part-ida, experiência ética e pressuposto epistémico de alterização ou vivência existencial da estranheza, arrisca-se a relativizar, minorar ou edulcorar as concretas situações em que dramaticamente se nos manifesta no plano político, cultural e social.

    Do mesmo passo, associado, muito em particular, a um programa teosófico ou filosófico de ascese mística ou contemplação especulativa, prometendo a eudaimonia, desmundaniza, interioriza e individualiza uma prática que contende com a partilha do mundo e a sua sociopolítica institucionalização cultural, pondo em causa a relação entre identidades e (ipseidades) pessoais e de grupo, num questionamento profundo da diferença.

    Glosado literária e poeticamente (tanto na épica, como na lírica e na tragédia), a partir de cada uma das valências mencionadas, quando não se convola em mero ornato ou expediente de inócuo sabor retórico, ora se exponencia negativamente como uma morte, ora se vê sublimado construtiva e pedagogicamente, enquanto momento de autodescoberta emancipatória e até transformação social, por vezes algo romantizado.

    Seja como for, com profundas raízes antropológico-culturais, forte impressão psicológica, graves implicações sociológicas e múltiplas expressões artísticas, o exílio penetra arquétipos fundamentais da nossa autocompreensão como seres projetuais,  lançados no mundo, perpassando o inconsciente coletivo e animando o imaginário e as representações simbólicas da relação entre os homens e o seu ambiente, não surpreendendo, portanto, que também tanja, a vários títulos e em diferentes níveis, a garantia dos direitos humanos e da dignidade pessoal de cada um.

    Tratando-se, aliás, de uma práxis historicamente recortada e trabalhada, sobretudo, em termos jurídico-políticos, não deixa de ser curioso que acuse alguma obsolescência e caducidade, precisamente no plano da sua conceitualização pelo direito (vale dizer, enquanto figura ou categoria dogmática), nomeadamente face à emergência e consolidação de institutos jurídicos circunvizinhos e à respetiva ordenação ou disciplina.

    Depois de um século em que o mesmo progresso técnico responsável pela explosão da mobilidade e o encurtamento das distâncias físicas e sociais motorizou conflitos, engenharias sociais e operações demográficas conducentes a formas inauditas de êxodo e migração, a regulação do exílio perdeu eficácia e validade autónomas: as leis exilares desapareceram, extinguiu-se como sanção expressa, o termo não comparece nos principais diplomas de direito internacional ou nacional, nem consta das enciclopédias e dicionários jurídicos.

    Entre a pena de expulsão ou banimento, a liberdade de deslocação (pressuposta pelas migrações), a tutela asilar (o direito de asilo proclamado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos) e o estatuto dos refugiados (regulado, como o primeiro, pela Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados), o exílio tende a esfumar-se juridicamente. Sobrevive, porém, como realidade factual (problemática) nos interstícios ou como fundo fenoménico dessas categorias, atentas sobremaneira às ressonâncias filosóficas e consequências pessoais e sociopolíticas acima referidas: como tal, gera uma área específica de pesquisa, conquanto epistemológica e metodologicamente transdisciplinar (a Exilforschung), e, como vimos, toca em diferentes pontos, a vários níveis e segundo distintos ângulos, a matéria dos direitos do Homem: permitindo-nos sondar direitos contra o exílio, ao exílio, no/durante o exílio, ao mesmo tempo que radicalmente os interroga, nas suas condições, fundamentos, regulativos, estruturas e funções.

    Prismas

    As palavras

    Inscrevendo-se num campo lexical sematológica e onomasiologicamente complexo, do qual fazem várias ideias e significantes como desterro, expulsão, banimento, remoção, expatriação, deportação, degredo, exclusão, deslocação, desenraizamento, retirada, confinamento, o exílio recobre realidades muito distintas, desde o exílio interior ao confinamento físico, da expulsão compulsória de um território à induzida busca de refúgio. Tal depreende-se logo de uma breve inspeção etimológica.

    Efetivamente, o vocábulo “exílio” difundiu-se na Europa, por via do francês exil, (assim atestado desde o século XII), a partir do latim exilium. Com base nas Etimologias de Santo Isidoro, e cavalgando uma aproximação metonímica e até metafórica quiçá demasiado aliciante para ser descartada por falsa, a palavra latina foi durante séculos persistentemente indexada à raiz solum, correspondente a solo, chão, terra. Em bom rigor, os estudos filológicos há muito desacreditaram semelhante derivação, alvitrando uma evolução desde os morfemas ex e sul, posto que subsistam dúvidas quanto à precisa genealogia do termo composto. Para uns, remonta originariamente ao radical protoindo-europeu *selh- (com o significado de “tirar”), de tal modo que exsul nomearia alguém que é retirado; outros, sem negarem a filiação no protoindo-europeu, religam-no antes à radícula *-al-, que intensionalmente refere ao movimento de andar ou caminhar – no caso, para fora de (ex) algum lugar (i.e., em direção a um espaço externo). Minoritariamente, aventa-se ainda a uma ascendência em *helh-, presente no grego elauno, que vale como conduzir, levar, mover, orientar ou impulsionar, fazendo do exsul aquele que é orientado ou (re-, de-) movido de e sobretudo para um lugar exterior. Seja como for, o prefixo ex- e o verbo salire- veiculam uma ideia forte de salto para o exterior, saída, extrusão, expelição e (explorando a sobremencionada dualidade) ê-xito. Do mesmo modo, em grego, o ato de banir exprime-se de muitas formas (ἐκβάλλειν, ἔλαύνειν, e ἐξορίζειν e ὁρίζειν), sendo phygé, que genericamente significa “fuga”, a que melhor parece captar a ideia de exílio. O verbo φεύγειν traduz-se como “fugir”, e tanto o fugitivo como o exilado são phygádes (mesmo que phygén pheúgein, segundo G. Agamben, melhor exprima a ideia de ir para o exílio). Para os judeus, a experiência do exílio diz-se Golah e Galut (גלות), formadas pelas mesmas letras e referentes a uma consciência e sentimento profundo de desenraizamento e sofrimento, muitas vezes característico da diáspora (tefutzah, i.e., dispersão).

    As estórias

    A mitopoética fundacional das principais civilizações, recolhida nas respetivas tradições literárias, abunda de estórias exemplares e lendárias de exílio. Assim acontece com o herói do Ramayana hindu e com o deus Susa, no Kojiki japonês, com a memória lendária do Rei Shun, na China, e as histórias de Sinhue, no Egito, e de Ammittamru, na acádica Ugarit. Empédocles considerava-nos desterrados do céu, e a ancilar e vetusta tradição oral helénica culminou numa fixação textual povoada de temas e figuras exilares, desde Andrómaca a Medeia, passando, obviamente, pelo próprio Ulisses (muito embora seja o latino Eneias o herói exil por excelência).

    Nenhuma outra civilização como a hebraica, porém, terá abraçado tão enfaticamente o exílio como traço constitutivo e vocação destinal da aventura humana, naquela tensão nomádico-sedentária com que se inscreveu no espaço e de acordo com a escatologia mediante a qual reconcebeu radicalmente a referência ao tempo e visão da história.

    Segundo a qabbalah luriana, à rutura dos vasos (shevirat há-kelîm), que destrói a harmonia divina e desencadeia a criação, seguir-se-ia a uma contração ou retirar-se originário de Deus (zimzûm) o seu banimento ou abandono na mais profunda solidão. Adão e Eva, criados à Sua imagem, são expulsos do Paraíso, como Caim será perseguido pelo remorso, sem quartel nem descanso, até aos confins da terra (num exílio sem fuga possível). Jeová insta Abraão a abandonar a terra dos pais, Moisés vagueará pelo deserto, (duplamente) expulso do exílio egípcio, José é condenado a uma vida exilar pela inveja dos irmãos.

    O testemunho prolonga-se historicamente na sucessão de desenraizamentos a que o povo judeu irá sendo sujeito – cativo no Egito como na Babilónia, refugiado em Sefarad, ou na França de Luís, o Piedoso, no Império Otomano ou em Amesterdão, expulso da Inglaterra de Eduardo I, da Espanha de Fernando e Isabel ou do Portugal de D. Manuel I. A tal ponto que, também psicológica e socialmente, a consciência do exílio acabará por reforçar-lhe a coesão conferindo significado às provações como sinal de eleição: para os místicos medievais, a longa errância dos judeus, há séculos afastados da Terra Prometida, teria mesmo um correlato no exílio da própria Shekhinah (a presença divina no mundo), após a destruição do segundo templo.

    As práticas

    Também a Antropologia e a Etnografia secundam a História e a sua maior ou menor efabulação narratológica na confirmação de que o exílio constitui um momento fundamental nas dinâmicas de ordenação comunitária e, bem assim, nas autorrepresentações e projeções que a suportam e dinamizam.

    As transgressões mais fundamentais para a autossubsistência da comunidade, entendidas como verdadeiras ofensas à ordem cósmica ou divina revestem um cariz polutivo, que ameaça contaminar e inquinar, real e simbolicamente, toda a vida comunitária. Como tal, requerem, uma purga ou sacrificial excisão, alcançado mediante extrusão ou derrame excretório de uma parte do corpo social (nem sempre os exatos culpados) e, com eles, a ablução da culpa coletiva a expiar, quanta vez para aplacar a ira divina. Ao remover o opressor, o banimento acreditava evitar uma escalada de vinditas, protegendo as pessoas e o próprio visado, ao mesmo tempo que o censurava com o gravame da desligação imposta, e servia o expurgo ou depuração coletivos, restaurando os limites simbólicos transgredidos. Posteriormente, à medida que se formam aristocracias e oligarquias seculares ou religiosas, o exílio colimará abertamente o afastamento de elites rivais e a diminuição da respetiva influência, por parte dos grupos preponderantes, dentro de uma estratégia política e num espírito ainda de saneamento social.

    De resto, nessa dupla vertente o captamos através dos séculos, com especial realce na cultura greco-romana. Antes disso, porém, dele temos vestígios, desde logo, em estelas e éditos reais egípcios, como o Decreto de Horemheb, ou na ação do senhor da torre de fronteira do reino hitita, na Acádia de Ammittamru II ou na secção 30 do Código mesopotâmico de Eshnuna, no Shujing chinês ou no Nihon Ryōiki japonês.

    Na Grécia Antiga, o recurso ao exílio tem pergaminhos ancestrais que remontam a práticas arcaicas de hegemonização política, no contexto dos conflitos entre fações aristocráticas, tendo-se convertido depois numa sanção penal para crimes graves (como o parricídio), e mais tarde ainda, para os crimes políticos. Olhando a Atenas, em particular, a legislação draconiana define-lhe um perfil dual: como pena legalmente imposta, destinada aos criminosos comuns, de carácter perpétuo e acarretando infâmia e confisco de bens; mas também como um direito de fuga, juridicamente amparado ou consentido (i.e. uma permissão jurídica de escapar à sanção capital), faculdade que podia ser exercida até à primeira oração de acusação e subsequente arguição da defesa.

    Neste cenário, merece especial destaque o original instituto político-democrático do ostracismo (provavelmente introduzido por Clístenes, no século VI a.C.), mediante o qual se podia propor, votar e decretar anualmente a expulsão de um cidadão. Ao contrário de um processo jurisdicional comum, o ostracismo dispensava qualquer tipo de ignição individual, bem como a dedução formal de uma verdadeira acusação; tão-pouco incluía a adução da correspondente defesa, processando-se, de modo igualmente peculiar em tudo o mais. Anualmente, durante a sexta pritania, a Ecclesia admitia que os cidadãos ponderassem a possibilidade de expulsar alguém, por mau comportamento político, numa prática que quase evoca o ritual do pharmakós expiatório. Aprovado o intento, a assembleia reuniria em Ágora dois meses mais tarde, a fim de avançar nomes concretos, para o efeito gravados e submetidos em fragmentos de cerâmica, que os arcontes, sob fiscalização de nove deles e do Conselho dos 500, contabilizariam, no final, apenas confirmando um apuramento válido se orçassem em mais de 6000 (ao todo, segundo Plutarco, ou em prol de um candidato, de acordo com Filócoro). Uma vez proclamado o resultado, a vítima dispunha de 10 dias para abandonar a cidade, devendo manter-se no exílio durante 10 anos. Outras cidades seguiram o exemplo ateniense, sendo conhecida sobretudo a figura do Petalismo, adotada na colónia italiana de Siracusa. Desta feita, os nomes eram escritos em folhas de oliveira, não se exigia um limiar mínimo de votos, e o período de exílio ficava-se pelos 5 anos.

    Por sua vez, o exílio romano constituía, nos seus primórdios, uma prerrogativa elitista no âmbito das relações gentilícias e das redes de solidariedades que elas estabeleciam para além das fronteiras citadinas. Daí que granjeasse os favores de analistas, como Políbio, para quem muito do sucesso internacional e da estabilidade de Roma se deviam a este encomiável costume constitucional. Com o tempo, porém, em particular perante as alterações do tecido social e das instituições e magistraturas republicanas, ou face à concentração crescente do poder, após a instauração do Principado e do Império, sofrerá uma evolução que modificará substancialmente as perceções a seu respeito.

    Efetivamente, a institucionalização jurídica que as Leis Pórcias lhe conferiram, na esteira mais ampla da democratização e suavização dos procedimentos penais encetada pelas Leis Valérias, alargou a todos os cidadãos a possibilidade de se eximirem a uma sentença de morte, mas paradoxalmente acabou por lhe vincar a faceta sancionatória, dadas as circunstâncias, bem menos favoráveis, em que a fuga e a estância no exterior se apresentavam ao cives comum. Em consequência, alimentará os discursos que, como em Ovídio, e com maior ou menor enfatuação retórica, sempre a tinham lastimado. Aliás, consultando e confrontando os juristas imperiais (Paulus, Marcianus, Ulpianus, Gaius) com as fontes republicanas, a imagem global do instituto, sobretudo nos concretos contornos da sua vigência, complica-se significativamente, adensando dúvidas. Estudos recentes chamam a atenção para várias incertezas. Assim, quanto à dispositividade e supletividade do exílio voluntário, importaria esclarecer se constituía uma alternativa ao processo, à condenação ou à sua execução, de um lado, e à pena de morte, ou também a outras penalidades (como os trabalhos forçados ou a damnatio ad ludum), de outro; relativamente ao âmbito subjetivo da punição, permanece dúbio se abarcava todos os honestiores e eventualmente os demais cidadãos ou se, na realidade, quedou reservada aos altos nobres. Tão pouco se têm por líquidos os critérios de determinação das penas e sua execução, ou as consequências legais, sociais e económicas que importavam.

    No papel, o Digesto permite-nos identificar diversas modalidades da pena, de acordo com os diferentes aspetos frisados e as variáveis que alegadamente admitiam, mas as opiniões doutrinais não coincidem inteiramente quanto à sua articulação, nomeadamente se e quando as penas eram definitivas, comportavam a perda de direitos civis, determinavam a expropriação (confisco da propriedade), definiam o local (e em que termos), produziam efeitos jurídicos com relação à restante família etc.

    De um modo geral, parece que o exílio comportava essencialmente duas espécies de sanção, com intensidade ou gravame crescente – a relegação e a deportação –, entre as quais se situaria a interdição de água e fogo, que ao tolher o exercício dos direitos do cidadão (e a própria sobrevivência) na zona abrangida pela sentença, constrangia o visado a exilar-se (Digesto, 48.22). Acrescia uma forma especial, dita in metallum (aplicável a exílios episcopais e consistente numa pena de trabalhos forçados em minas e pedreiras para pessoas de classes sociais inferiores). Em suma, enquanto opção voluntária, correspondia a uma fuga, ao exercício de um jus exsulandi. Acentuando-lhe o tónus constritivo, consistia num banimento ou expulsão, por relegação, interdição ou deportação.

    À passagem da antiguidade tardia para a idade média, acompanhando a queda do império do ocidente e a formação dos primeiros estados pós-romanos, sobressai o exílio clerical, ativado pelo imperador ou pelos conselhos eclesiásticos (quando não correspondia a uma fuga motu proprio), por norma na sequência de importantes debates teológicos, decursos sob a égide e com forte interesse e investimento imperial.

    Nos séculos seguintes, uma plêiade heterogénea de soluções e práticas expulsivas conviveu com ímpetos trânsfugas – procurando por ilhas de liberdade ou foros protegidos – e revindicação de privilégios pessoais, ao mesmo tempo que se conjugava, amiúde, com a excomunhão, como sucedia no exercício do banimento imperial (em caso de heresias e ofensas graves perpetradas por personalidades influentes).

    Neste plano, a rutura moderna acusará o duplo impacto da fratura religiosa provocada pela Reforma (com o cortejo de perseguições e migrações forçadas que causou) e da descoberta de novos mundos e rotas, que rasgou novas possibilidades e perspetivas, tanto de libertação individual, como de robustecimento e enriquecimento dos Estados, pela deslocação estratégica das populações, mormente de elementos indesejados.

    A aventura marítima e a ocupação e exploração dos territórios coloniais, ao exigir a mobilização forçada de mais braços, disseminarão o exílio penal como parte de uma estratégia duplamente útil de remoção de elementos socialmente perturbadores e sua arregimentação para os trabalhos difíceis da expansão, matéria em que Portugal assumiu um papel pioneiro. Mais do que o banimento ou relegação dos criminosos, para preservação da ordem comunitária, sobrelevará a deportação para (e o consequente exílio em) determinados locais, carentes de homens (pense-se nos forzados usados pela Coroa espanhola nas remessas britânicas de homens, primeiro para a Escócia e a Irlanda, depois para a América e a Austrália; nos forçados franceses concentrados nos bagnes, antes que a Revolução criasse a deportação vitalícia; ou no instituto penal russo da katorga, introduzido por Pedro, o Grande, no início de 700).

    A idade contemporânea abriu uma nova etapa, que se desdobra, contudo, em vários ciclos, muito diferentes entre si. A era das revoluções (políticas, económicas, sociais, culturais e técnico-industriais) transformando radicalmente a imagem e ideia dos homens e o reconhecimento do seu estatuto de cidadãos e inerentes garantias jurídicas, não deixará de gerar novas vagas de migrações: dos exilados políticos, em geral; das classes populares em êxodo para as cidades industriais e da miserável vida que estas lhes reservam para os territórios coloniais; dos novos colonos, tornados cada vez mais necessários, uma vez suprimida a escravatura e lançada a corrida a novas matérias primas e mercados, no quadro dos confrontos imperiais do século XIX; dos refugiados étnicos, à medida que os nacionalismos comecem a estrangular e envenenar o cosmopolitismo dos impérios pluriestaduais, multilingues, multirreligiosos europeus.

    As artes

    Tão presente ao longo dos séculos e de tamanha pregnância emocional para quem o vivencia, dificilmente se estranharia que as vicissitudes do exílio permeiem as variegadas formas de expressão criativa do Homem, como quer que as teorizemos em relação ao contexto e experiência de base que ele lhes fornece. Com efeito, cumpre distinguir, pelo menos, entre a arte no e sobre o exílio, por muito que naturalmente se enlacem, naquele misterioso e tão discutido nexo tensional entre obra e autor, história e invenção, onde se vislumbram assomos de autotranscendência. Este lance de reconfiguração e transfiguração (pessoal ou objetual) do exílio pode ser detetado tanto nas artes plásticas como na música, no cinema, mas, talvez, de modo mais preponderante na literatura.

    Entre as contribuições de Portugal, sobressaem também quer os exemplos humanos de exílio, quer a sua tematização, clássica ou romântica, moderna ou contemporânea. A título de exemplo, recorde-se: o Degredado, de Soares dos Reis, na escultórica; Exílio, de Paula Rego, na pintura; a canção de intervenção no e do exílio, na música do século XX; a poesia e os escritos desde ou versando o desterro (rigorosamente forçado ou não), de Camões e Fernão Mendes Pinto a Aquilino, Jorge de Sena ou Rodrigues Miguéis, no plano literário,

    Precisamente na literatura se acha, em quase todas as culturas, o pedaço de leão deste manancial criativo, dando azo ao surgimento de um verdadeiro subgénero (Exilliteratur) muito trabalhado nos países mais marcados pelo fenómeno, ao longo do século XX, como sucede com os da Europa Central, nomeadamente de língua alemã (T. e H. Mann, Broch, Musil, Zweig), mas também com a Polónia (Gombrowicz, Milozs) e a Rússia (depois de Trotsky, Isaac Babel, Nabokov, Brodsky, Ulitskaia). O tema recua às cosmogonias que mergulham na noite oracular dos tempos, conhece alguns dos seus loci classici na epopeia virgiliana ou nos Tristia de Ovídio, fulgura nos salmos judeus e em alguns monogatari japoneses, percorrendo, de modo quase obsidiante, a obra de Shakespeare ou imprimindo uma autobiográfica marca indelével na de Victor Hugo.

    Em última instância, retornados à era dos extremos, talvez nos tenhamos de render a Blanchot, quando acorda a circunstância matricialmente exilar do poeta e da poesia “Le poète est en exil, il est exilé de la cité, exilé des occupations réglées et des obligations limitées, de ce qui est résultat, réalité saisissable, pouvoir […]. Le poème est l’exil, et le poète qui lui appartient, appartient à l’insatisfaction de l’exil, est toujours hors de lui-même, hors de son lieu natal, appartient à l’étranger […]. Cet exil qu’est le poème fait du poète l’errant, le toujours égaré, celui qui est privé de la présence ferme et du séjour veritable” (L’Espace Littéraire).

    As ideias

    Ora, se é poeticamente que o Homem habita, preste se divisa porque o exílio ganhou foros de categoria ou topos filosófico, sobretudo num tempo, como o nosso, em que os movimentos de desterritorialização questionam o liame à terra, nutrindo uma forte suspeita, quando não movendo declaradas impugnações, contra as formas paroquiais, rígidas e esquemáticas de inteligência e racionalização teórica, prática e estética da realidade.

    Este relevo filosófico não se afigura, em boa verdade, inteiramente original ou inédito, como aliás deflui dos pontos anteriores. Comprovámo-lo no Teeteto (176 a-b) e sobretudo no Fédon (67 c-d), onde se exorta à katharsis da alma através da libertação corporal; em Aristóteles, para quem a vida contemplativa do filósofo supunha a apolidia, i.e., uma subtração ou fuga à cidade que faz dele um estrangeiro (Política – 1324 a 15-16; 1253 a 3-4; Ética a Nicómaco – X, 7, 1177 b 16-31); nas Enéadas de Plotino (VI, 9, 11 49-51), onde a máxima Phygé mounou pros monon instiga ao abandono da realidade sensível do mundo e à rutura com os vínculos da polis, numa opção pela felicidade teorética; ou ainda na ideia de que todos somos afinal exilados, talqualmente a propugna Plutarco (Moralia, VII, 47; De exilio (Περί φυγής)) e não alheia ao cosmopolitismo estoico que impregna a obra de Cícero ou Séneca.

    É no século XX, todavia, que semelhantes intuições longínquas sobre o ex-tâse teosófico se veem expressamente associadas à ex-istência ôntico-ontológica, à hospitalidade ética ou à ex-propriação linguística.

    Lévinas enxerga na experiência do exílio não a degradante perda da unidade e autocoincidência do si, mas uma condição da relação com Deus e o outro – como princípio de infinito, não totalizável – e, nessa medida, uma pedagogia da alteridade e uma abertura para a dimensão e possibilidade da própria socialidade; J. Skhlar preconiza, como mudança paradigmática, uma interpretação da história das ideias à luz do exílio, pela qual conceitos como obrigação e lealdade possam ser recompreendidos; Zambrano identifica a pátria com o próprio exílio; Jacques Derrida reivindica o marranismo como pensar sem identidade, nem pertença; e autores como Kristeva a Kearney valorizam a Psicanálise e a Fenomenologia do estranhamento e da estraneidade, que começa pelo próprio.

    Numa formulação emblemática – com a vantagem de não ocultar sob metaforizações generosas a crueza da experiência concreta da maioria dos exílios –, Edward Said lobrigou nele um enfrentamento entre libertação e tragédia, um misto de sofrimento e potencial crítico e reconstrutivo, fruto da problematização da identidade que acarreta; e, em tempos mais recentes, duas pequenas incursões no tema, por parte de Giorgio Agamben e de Jen-Luc Nancy reavivaram a fecundidade do tema, gerando extensa bibliografia secundária.

    Resgatando-o da marginalidade, Agamben erige-o em figura paradigmática da relação juspolítica originária: é no umbral de indiferença entre o externo e o interno, a exclusão e a inclusão – tal como na exceção (pela qual a lei vigora, retirando-se) – que a vida humana se revela na sua imediata e originária relação com o poder soberano. A condição humana, longe de coincidir com uma inscrição comunitária, caracteriza-se pela exilaridade, a perturbadora apatria superpolítica (hypsípolis ápolis), a que aludia Sófocles, na Antígona.

    Também para Jean-Luc Nancy o reconhecimento da índole exílica da existência é um topos comum da humanidade, agravado pelas condições modernas, que o volvem de passageiro em definitivo, sem fim, nem finalidade: afinal, se o Dasein é o Seiendes cuja essência consiste na existência, avulta sobremodo o ex e não o sistere, o momento da saída, mais do que a instância ou estância.

    Assim sendo, o conceito de exílio traduz uma dimensão constitutiva da existência humana, sobretudo moderna – um estar fora do ou ter saído do (ser) próprio (da propriedade em todos os seus sentidos), que tanto pode constituir uma desgraça, como oferecer a possibilidade mais positiva do ser. Contudo, no lugar de uma dialetização destas duas interpretações colidentes, que faz do exílio um momento do negativo, em trânsito para a Aufhebung, o que releva é o exílio sem retorno, enquanto constituição mesma da existência, propriedade do próprio – uma propriedade de estranhamento que se nos manifesta no corpo, na linguagem e no ser-com, sob a ameaça de uma desapropriação, cujo oposto é o asilo.

    O caso português

    Muitas das referências arroladas ressoam fortemente na identidade mítica de um povo que se concebe lançado ao mundo, numa inconformação com o seu território e destino, mas sofre por isso as dores da diáspora e da distância, ao ponto de erguer o sentimento de perda e nostalgia a precípuo Leitmotiv cultural. Nesta perceção descompensada do ego e do espaço, a pobreza natural, conjugada com o apelo seja de além-mar, seja de regiões mais ricas do próprio continente ajudam a perceber a propensão migratória; a escassez de meios humanos, a desigual ocupação do território, sobretudo com a criação de um império colonial e o parco pluralismo (concentração de poderes) religioso, político, etc. pesaram certamente nas práticas do degredo e da deportação. Elas atingem os grandes e os pequenos do reino (ressalvadas as distâncias), os que a história guardou salientes e a massa corredia de anónimos, numa galeria que abrange reis (de D. Sancho II a D. Miguel ou D. Manuel II), nobres, intelectuais e artistas cógnitos, ao lado dos muitos esquecidos.

    Curiosamente, não obstante os contributos prógonos de Emilia Viotti e Hélio Viana, o estudo historiográfico do exílio no espaço de língua portuguesa só floresceu a partir dos anos 90, muito devido a trabalhos como os de T. Coates, G. Pieroni ou de Maristela Toma.

    Os alicerces romanos e bárbaros do Direito português explicam a presença, no seu seio, das figuras de exílio e bando (ou banimento), características de ambas as tradições. Se há alguma originalidade nacional, ela prende-se sobremaneira com o degredo, instituto sem paralelo filológico, no plano comparado, e historicamente precursor no casamento das finalidades penais com os imperativos mercantilistas e utilitaristas da expansão marítima e colonial. Na verdade, as leis visigóticas que influenciaram os costumes e a legislação foraleira nacional já previam o desterro. Sentenciado ao exeat de villa, o criminoso era condenado a deixar o local onde morava, depois de paga uma pena pecuniária, e impedido de regressar, sob pena de sanção a quem o abrigasse.

    Pelo menos desde o século XIII, os registos de utilização da pena de degredo autorizam a distinção entre duas grandes modalidades de sanção: o exílio interno e o exílio nas galés. A prática do exílio interno supunha a existência de coutos, locais de asilo que abrigavam (davam couto a) foragidos da justiça. O exílio nas galés – do qual se colhem testemunhos já no reinado de D. Dinis – envolvia a prestação forçada de serviços navais.

    Mais tarde, a pena de degredo passou a integrar o livro V (t. 63) das Ordenações jurídicas do reino, sendo objeto de um regimento geral e de outro visando o degredo nas galés, graças aos quais podemos reconstituir a lenta transição das práticas de desterro medieval para o sistema moderno de exílio.

    Naturalmente associadas à tipologia triádica dos crimes que presidia ao Liber Terribilis, as sanções de degredo variavam na destinação e duração e serviam, no seu todo, para punir mais de 250 infrações criminais. Aquém do impedimento de permanecer em qualquer dos territórios do império (que constituía a consequência penal mais grave), achavam-se aí, em escala decrescente, a condenação perpétua ao degredo num local específico, a condenação às galés, assim como os degredos num local designado e por tempo indeterminado, num mosteiro (restrito aos clérigos) ou apenas fora da vila ou de um termo.

    As finalidades retributivas da pena obtinham-se através da ablação financeira, da amputação do convívio familiar e da extração e desenraizamento forçados (com o afastamento dos lugares e ambientes de origem e pertença). A finalidade preventiva consumava-se na remoção de elementos putativamente perturbadores da ordem pública e no consequente resguardo da sociedade.

    Com o fim do Ancien Regime e a estabilização da Monarquia Constitucional, após a Guerra Civil, o primeiro código penal português (de 1852) consagrou como consequências penais a expulsão para fora do reino, o degredo no Ultramar (por regra, em África) e o desterro para um local determinado ou para fora da comarca: os dois primeiros entre as penas maiores (arts. 5.º e 4.º, respetivamente), e o último como pena correcional (art. 2.). Quanto ao degredo territorial, podia ser interno e externo e, dentro deste, colonial ou inter-colonial.

    Apesar das reformas de Barjona de Freitas, em 1867, de Rebelo da Silva e de Lopo Vaz de Carvalho (1884) – abolindo a pena de morte, imprimindo uma função corretiva e progressiva às penas de degredo e pondo fim às penas de caracter vitalício, respetivamente –, o código foi substituído em 1886, sem que esta modalidade de exílio desaparecesse. De facto, o degredo surgia agora entre as penas maiores, quer como complemento das penas de prisão (celular) superiores a quatro anos (artigo 55.º), quer como pena alternativa (art. 57.º). Previa-se também o degredo temporário e a expulsão sem limitação temporal (art. 62.º) ou a título substitutivo das penas de prisão com trabalho, na ausência de estabelecimentos apropriados para o efeito (arts. 60.º e 61.º). O desterro ocorria ainda como pena correcional, no art. 65.º

    Embora envolto em polémica, o degredo atravessou os últimos anos da monarquia constitucional e toda a primeira república, se bem que gradualmente cingido à deportação para Angola. O envio de condenados metropolitanos para esta região foi abolido pelo decreto 20:877, de 1932, que substituiu o modelo da colonização penal ultramarina pelo internamento numa colónia penitenciária em regime de trabalho agrícola ou predominantemente agrícola.

    Com o conforto da melhor doutrina da época, estabeleceu-se então uma diferença entre exilados políticos e sociais, que implicava a criação de uma prisão insular para os primeiros. Segundo Beleza dos Santos, devia designar-se degredo apenas a expatriação de criminosos comuns, ao passo que a expatriação dos criminosos políticos constituiria uma deportação. No entanto, se a Carta Orgânica do Império Colonial (1933) já restringira também o degredo intercolonial, a revogação, abolição e extinção da pena teve de aguardar pelo decreto 39668, de 1954 e não coibiu a deportação de condenados por delito de opinião (ou condenados políticos), para o famoso campo de concentração do Tarrafal, aberto nos anos 30, encerrado em 1954 e reativado com o início da guerra colonial, em 1961.

    De facto, a legislação penal de Cavaleiro de Ferreira, em especial os diplomas do final dos anos 40 e inícios da década seguinte, endureceu o combate aos opositores políticos, admitindo o degredo para delinquentes habituais, mas também por crimes contra a segurança do Estado (decreto 38.720, de 8-IV-1952), ao mesmo tempo que eram criadas a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado e normalizadas as medidas de segurança e os ominosos tribunais plenários (Decreto 39.321, de 53). Assim, enquanto o degredo dos criminosos comuns continuou a esbater-se progressivamente, por erosão da crítica recorrente às suas deficiências como tipo penal e medida de política colonial, os últimos 25 anos do regime ficaram marcados pelo crescendo de deportações políticas, pela emigração em massa, por razões económicas ou militares (dos faltosos, desertores e refratários), e pelo exílio de muitos opositores, com relevo para dirigentes políticos (Álvaro Cunhal, Mário Soares), escritores (ver supra), músicos (José Mário Branco, Sérgio Godinho, Luís Cília) e outros os artistas em geral.

    Por outro lado, algo ironicamente, o estatuto de neutralidade assumido pelo país durante a Segunda Guerra Mundial fez dele, durante um curto lapso de tempo, uma verdadeira terra de exílio, sobremodo enquanto cais e ponte de embarque para muitos foragidos em trânsito, mesmo se o impacto dessa peculiar vaga de imigração se tivesse circunscrito a determinadas regiões do país (na proximidade da capital).

    Exílio e direitos humanos

    Percorrendo o Direito Internacional e os ordenamentos jurídicos nacionais, não abundam, mesmo na doutrina e na jurisprudência, as menções ao exílio, sendo o termo usado de modo essencialmente descritivo, em referência a situações heterogéneas e reconduzíveis, quando juridicamente relevantes, a outros conceitos, institutos e quadros normativos. Com efeito, enquanto sanção penal, oficialmente não existe; se reduzida ao abandono de um país, por razões políticas, religiosas, económicas, sociais, etc., recai no domínio mais amplo das migrações (ainda que forçadas ou induzidas); como fuga a responsabilidades jurídicas, constitui ilícito, pelo menos na ordem interna.

    Sobra naturalmente o problema humano, social, político e económico, mas também, em parte por isso mesmo, jurídico e de direitos humanos e fundamentais. Quanto a estes últimos, cuja defesa está muitas vezes na origem da expulsão ou fuga de um país, deveriam certamente proteger contra o exílio (como medida administrativa ou penal), conferir um direito ao exílio (enquanto liberdade migratória) e tutelar o exilado rumo ao e no exílio.  E, na verdade, os cidadãos titulam hoje posições jurídicas ativas, substantivas e processuais (direitos, liberdades e garantias) perante medidas penais ou administrativas de cunho exilar, quer se trate de relegação territorial, de confinamento ou de deportação e expatriação.  Mais: as liberdades que logo aí pontificam, de um ponto de vista defensivo, sustentam também faculdades positivas de deslocação, nomeadamente para além das fronteiras nacionais. Contudo, muito resta a discutir sobre o direito a ter direitos do exilado, antes de aceito como residente ou cidadão de um Estado e, especialmente, acerca do estatuto jusfundamental de que deve dispor no exílio, sobreguarecido em se tratando de beneficiários do direito de asilo e do estatuto de refugiados.

    Como a intervenção na garantia dos dois primeiros se conserve fortemente dependente da soberania jurídica e do poder fáctico das autoridades nacionais sobre a sua população e território, o direito internacional universal ou regional, geral ou sectorial concentra-se na imposição de regras mínimas aos Estados de destino, através do direito de asilo e do estatuto dos refugiados. Assim, o sistema jurídico português, ora tomado como exemplo, interdita a expulsão de cidadãos portugueses do território nacional (art. 33.º, n.º 1), defluindo do 26.º, n.º 4, que a privação da cidadania e as restrições à capacidade civil não podem ter motivos políticos como fundamento. Nos termos do art. 27.º, n.º 2., com as exceções previstas no número subsequente, ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança. O art. 30.º, por sua vez, proscreve as penas e medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.

    Por outro lado, além de impor a definição legal do estatuto de refugiado político (art. 33.º, n.º 9), a constituição garante também o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência da sua atividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana (art. 33.º, nº 8). Paralelamente, subordina a uma decisão judicial a expulsão de quem tenha entrado ou permaneça regularmente no território nacional, de quem tenha obtido autorização de residência, ou de quem tenha apresentado pedido de asilo não recusado, confiando à lei a determinação de formas decisionais expeditas (art. 33.º, n.º 2). Note-se que a expulsão, de acordo com a legislação portuguesa, pode ser administrativa e judicial, neste último caso seja como pena acessória da sanção penal cabida pelo crime comisso, seja como medida autónoma. Por outro lado, embora a lei aluda a um afastamento, este corresponde, em rigor e na prática, à execução da medida que desloca o estrangeiro para fora do país, que pode ocorrer com a expulsão, com a ordem para o abandono, com o reenvio derivado da readmissão, com a condução à fronteira e com a extradição (vide a lei n.º 27/2008, de 30 de junho (que Estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária) e a lei n.º 23/2007, de 4 de julho (que Aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional), ambas várias vezes alteradas).

    Já no plano internacional, os direitos humanos, nomeadamente o direito à nacionalidade, protegem os cidadãos contra expulsões arbitrárias e a perda de cidadania seus países de origem, requerendo pelo menos a observância de procedimentos jurídicos adequados nos casos em que tal seja admitido.  Ao mesmo tempo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais também tutelam a liberdade de movimentos, tolhida por medidas de isolamento, de banimento, de saída e de entrada no país de origem.

    Forçadas ao exílio as pessoas têm direito a procurar refúgio, a requerer asilo e a beneficiar de todas as faculdades e garantias que o correspondente estatuto lhes confere, designadamente a coberto da Convenção dos refugiados de 51 e demais instrumentos internacionais específicos (da Convenção de Genebra, relativa à proteção das pessoas civis em tempo de guerra, de 12 de agosto de 1949, à Convenção de Dublin, de 1990).

    Uma vez no exílio, gozam dos direitos fundamentais previstos nos regimes internacionais de tutela, começando pelo direito à vida, à liberdade e à segurança e passando pela proteção contra discriminações infundadas e ingerências ou detenções arbitrárias às quais se mostram particularmente expostos e vulneráveis.

    Finalmente, os governos no exílio, embora sem subjetividade jusinternacional autónoma relativamente ao Estado cuja legítima representação legitima reclamem, podem ser admitidos (ainda antes do pretenso reconhecimento), a tomar parte em tratados internacionais, elaborar documentos jurídicos (como constituições), criar partidos políticos, organizar eleições, manter forças militares ou emitir bilhetes de identidade.

    De todas as maneiras, como o século XX provou à saciedade, se é na exceção que se descobre a relação da vida nua com a soberania, o exílio expõe os próprios direitos na nudez da fundamental paradoxia com que se insinuam a afirmam entre, para além e, se necessário contra os Estados, mas ainda, as mais das vezes, e quiçá indispensavelmente, também a partir e através deles. Entre os episódios biográficos de exílio e a condição ontológico-existencial do exilado, emerge talvez uma dupla exigência fundamental para o direito e a política, nacionais e internacionais: para os primeiros, num plano imediatamente mais prático, com relação ao tratamento dispensado tanto a nacionais, como estrangeiros; para o segundo, e com um alcance filosófico, que verte sobre o anterior, relativamente à própria noção de direitos humanos, simultaneamente enquanto direitos e como humanos. Em ambos, perguntando pelo sentido do nosso singular comum.

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    Autor: Luís Meneses do Vale

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