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    Direito Internacional Humanitário

    Noção

    Tal como a designação sugere, o Direito Internacional Humanitário (DIH) é uma ramo do Direito Internacional que pode ser definido, portanto, como um conjunto de princípios e normas jurídicas internacionais, “de origem convencional ou consuetudinária, especificamente destinado a ser aplicado em situações de conflitos armados, internacionais ou não internacionais, e que limita o uso da violência com o objetivo de preservar aqueles que não participam ou que já não participam diretamente nas hostilidades, bem como de limitar, por razões de humanidade, o direito das partes em conflito de escolher livremente os métodos e os meios utilizados nos conflitos armados” (PEREIRA, 2014, 3).

    Analisando a noção apresentada, percebe-se que as fontes principais do DIH são, para além dos princípios de direito aplicáveis às situações por ele abrangidas, as convenções ou tratados internacionais, podendo ainda, como em termos gerais no Direito Internacional, haver outras fontes destas decorrentes como atos unilaterais, bem como normas consuetudinárias. Percebe-se, ainda, o seu campo de aplicação: os conflitos armados, quer sejam internacionais quer sejam não internacionais, embora não seja assim desde a sua origem, como veremos adiante. Quanto aos seus objetivos, eles decorrem da preocupação com a salvaguardar do ser humano, pelo que se preocupa em preservar aqueles que não participam diretamente nas hostilidades (o que nos remete para os civis, que merecem proteção exatamente por essa não participação) ou aqueles que já não participam (e, nesse caso, podemos pensar em combatentes que não se encontram em situação de prosseguir os combates, por exemplo, porque caíram em poder do inimigo e estão detidos ou porque sofreram ferimentos que os impedem de continuar o combate, ou genericamente, os considerados “fora de combate”); além disso, com o mesmo objetivo de salvaguarda do ser humano, não se permite que as partes em combate escolham livremente os métodos que se lhes revelem como via de prosseguir os seus fins, precisamente porque o seu uso se pode traduzir em sofrimento agravado das vítimas dos mesmos, nem os meios de combate, ou seja, as armas usadas, pelo hoje encontramos, no acervo de convenções que integram o DIH, várias que vêm proibir determinadas armas.

     

    Quando surge

    Podemos aferir a data de surgimento deste novo ramo de Direito Internacional pela data em que foi adotada a primeira convenção que nele se insere: a Convenção de Genebra, de 1864, para melhorar a sorte dos militares feridos nos exércitos em campanha. Saliente-se que já existiam normas aplicáveis em situações de guerra a algumas bastante completas, sendo normalmente referido o Código Lieber, como ficou conhecido o documento designado Instructions for the Government of Armies of the United States in the Field, promulgado em 1863 pelo Presidente Abraham Lincoln. A questão é que esses documentos eram regulamentos dos exércitos e, portanto, normas sem carácter internacional, que vinculavam apenas os exércitos do Estado que as emanava. A partir desta convenção, muitas outras foram adotadas, quer de carácter geral, quer com objetivos mãos específico, como por exemplo, as dirigidas à proteção de grupos particularmente vulneráveis ou as que determinam a proibição de determinadas armas.

     

    O desenvolvimento do DIH

    Depois da adoção da Convenção de Genebra, de 1864, vários foram os documentos que foram sendo aprovados para desenvolver aquele instrumento jurídico inicial. Pode referir-se, numa primeira fase e até à Segunda Guerra Mundial, com carácter mais geral, a Segunda Convenção da Haia, de 1899, e a Quarta Convenção da Haia, de 1907, que têm como anexo o regulamento relativo às leis e costumes da guerra em terra, bem como alguns visando aspetos específicos da condução das hostilidades, de que pode referir-se, a título de exemplo, a Convenção de Genebra de 1906 ou a Convenção de 1929, que desenvolveram a Convenção de Genebra de 1864 e por isso têm designação idêntica, ou uma outra Convenção de Genebra, também de 1929, sobre os prisioneiros de guerra.

    No pós-Segunda Guerra Mundial, pode dizer-se que foram estabelecidos os grandes pilares do DIH atual, pela adoção das quatro Convenções de Genebra, em 1949 (I Convenção de Genebra, para Melhorar a Situação dos Feridos e Doentes das Forças Armadas em Campanha; II Convenção de Genebra, para Melhorar a Situação dos Feridos, Doentes e Náufragos das Forças Armadas no Mar; III Convenção de Genebra, Relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra; e IV Convenção de Genebra, Relativa à Proteção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra, sendo esta a primeira convenção a versar especificamente sobre a proteção de civis), completadas por dois protocolos adicionais, adotados em Genebra, em 1977 (Protocolo I Adicional às Convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949, relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais, doravante referido como I PA;  e Protocolo II Adicional às Convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949, relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados não Internacionais, adiante referido como II PA). Quando pensamos em convenções que versam sobre aspetos específicos, encontramos um vasto número que incide, por exemplo, sobre a proibição de determinadas armas, como armas de destruição maciça – biológicas, químicas e mesmo nucleares (esta última adotada em 2017 e já em vigor, mas não vinculando qualquer Estado detentor de armas nucleares) –, minas antipessoais ou munições (como as munições de dispersão ou cluster munitions), ou convenções dirigidas a proteger grupos particularmente vulneráveis, como Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Participação de Crianças em Conflitos Armados, ou ainda convenções que visam proteger bens que carecem de proteção acrescida, como a Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado e respetivos protocolos adicionais.

     

    Campo de aplicação e sua evolução

    Quando surgiu o DIH, no século XIX, as guerras eram travadas através de as batalhas muito violentas, entre exércitos estaduais, em campos de batalha, embora a entrada em cena da aviação, de início muito rudimentar (recorde-se, nesse sentido, uma Declaração, aprovada em 1899, para Proibir, pelo Prazo de Cinco Anos, o Lançamento de Projéteis e Explosivos a partir de Balões, e Outros Métodos de Natureza Similar, que foi renovada em 1906, referindo-se a uma de prática já existente, embora em pequena escala), mas que foi sendo objeto de desenvolvimento crescente, tenha conduzido a que os combates deixassem de ser travados nos estritos campos de batalha. Podemos dizer que o DIH era, então, aplicável apenas ao estado de guerra. Este, para além de ser interestadual, estava sujeito a formalismos específicos para o seu início. Assim, e de acordo com o art. 1.º da III Convenção de Haia, de 1907, relativa à abertura das hostilidades, “[a]s Potências Contratantes reconhecem que as hostilidades entre elas não devem começar sem um aviso prévio e explícito, sob a forma quer de uma declaração de guerra justificada quer de um ultimato com uma declaração de guerra condicional”; tratando-se de formalidade anteriormente conhecida, não estava, até então, definida como um dever de quem pretendia iniciar uma guerra.

    Por outro lado, as guerras terminavam com a celebração de um tratado de paz entre as partes, que normalmente era precedido por um período de tréguas – um armistício – em que as operações militares eram suspensas e eram negociadas as condições de paz a estabelecer no tratado. É ainda de referir que, tratando-se um ramo típico do Direito Internacional, a sua aplicação estava sujeita ao princípio da reciprocidade, o que implicava que um Estado que se vinculasse a um tratado de DIH só ficava obrigado a respeitar as obrigações dele decorrentes se entrasse em guerra com outro Estado também ele parte do mesmo tratado.

    Com a adoção das Convenções de Genebra, de 1949, esta situação altera-se. Terminada a Segunda Guerra Mundial, o Comité Internacional da Cruz Vermelha teve a iniciativa de convocar uma ampla conferência em Genebra para proceder a uma revisão geral das normas de DIH, pretendendo que as normas a adotar fossem aplicáveis a todos os conflitos armados. Neste aspeto, deparou-se com forte resistência por parte dos Estados, a quem não agradava a ideia de regulamentar internacionalmente os conflitos internos, uma vez que os obrigava a reconhecer direitos a grupos que lutavam contra o poder neles instituído (embora também lhes impusesse deveres). Essa resistência conduziu a que as convenções aprovadas em 1949 regulem essencialmente conflitos armados internacionais, embora a pressão do Comité Internacional da Cruz Vermelha para que fossem abrangidos todos os conflitos armados tivesse por efeito a inclusão de um art. 3.º, comum às quatro convenções, que dispõe: “No caso de conflito armado que não apresente um carácter internacional e que ocorra no território de uma das Altas Potências contratantes, cada uma das Partes no conflito será obrigada a aplicar pelo menos as seguintes disposições: […]”, seguindo-se a enumeração de algumas – poucas – normas, que se reportam às mais fundamentais normas do DIH. Trata-se, por isso, de uma norma da maior relevância, uma vez que, através dela, se alarga o âmbito de aplicação do DIH, que deixa de regular apenas conflitos armados interestaduais. Além disso, pela sua introdução, os conflitos armados passam a classificar-se como “internacionais”, ou “sem carácter internacional” (vulgo “internos”), aspeto relevante para determinar as normas que se aplicam a cada um. Por outro lado, a aplicação destas convenções e, em termos gerais, do DIH, deixa de estar submetida ao princípio da reciprocidade, como decorre do art. 1.º comum às Convenções de Genebra, que determina que “As Altas Partes contratantes comprometem-se a respeitar e a fazer respeitar a presente Convenção, em todas as circunstâncias”; além de que há um entendimento amplo de que as obrigações fundamentais do direito internacional humanitário não são devidas a um qualquer outro Estado em particular, mas à comunidade internacional no seu conjunto, como reconheceu o Tribunal Internacional Penal para a ex-Jugoslávia. E, quanto às Convenções de Genebra, as suas normas impõem-se a todos os Estados, ainda que as não tenham ratificado, porque lhes é reconhecida natureza consuetudinária, como afirmado pelo Tribunal Internacional de Justiça.

    Em 1977, são adotados os referidos protocolos adicionais. O Protocolo I Adicional às Convenções de Genebra vem desenvolver o regime jurídico aplicável aos conflitos internacionais e, por seu intermédio, o próprio conceito de conflito armado internacional é alargado. Assim dispõe o n.º 4.º do art. 1.º: “Nas situações mencionadas no número precedente [que se refere a conflitos armados internacionais] estão incluídos os conflitos armados em que os povos lutam contra a dominação colonial e a ocupação estrangeira e contra os regimes racistas no exercício do direito dos povos à autodeterminação, consagrado na Carta das Nações Unidas e na Declaração Relativa aos Princípios do Direito Internacional Respeitante às Relações Amigáveis e à Cooperação entre os Estados nos termos da Carta das Nações Unidas”. Já o Protocolo II Adicional dispõe ser aplicável a “todos os conflitos armados que não estão cobertos pelo artigo 1.º do Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949, Relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais (Protocolo I), e que se desenrolem em território de uma Alta Parte Contratante, entre as suas forças armadas e forças armadas dissidentes ou grupos armados organizados, sob a chefia de um comando responsável, exerçam sobre uma parte do seu território um controlo tal que lhes permita levar a cabo operações militares contínuas e organizadas e aplicar o presente Protocolo” (art. 1.º, n.º1). Esclarece, ainda, que a sua aplicação se reconduz a “conflitos armados”, pelo que não é aplicável a “situações de tensão e de perturbação internas, tais como motins, atos de violência isolados e esporádicos e outros atos análogos, que não são considerados como conflitos armados” (art. 1.º, n.º 2). A referida relutância dos Estados em regular conflitos internos fica bem patente se pensarmos que as quatro convenções de Genebra que regulam conflitos armados internacionais são constituídas por perto de 430 artigos mais anexos, e o I PA ainda acrescenta mais 102 artigos e anexos, enquanto as normas dirigidas aos conflitos não internacionais se resumem a um artigo nas Convenções de Genebra, a que acrescem 28, adotados pelo II PA. No entanto, deverá ter-se em conta que muitas das convenções que integram o DIH se aplicam a ambos os tipos de conflitos armados, como as que proíbem determinados tipos de armas, e ainda que grande parte das normas de DIH de natureza costumeira, que foram reunidas numa publicação promovida pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha, da autoria de Jean-Marie Henckaerts e Louise Dowald-Beck, é aplicável a ambos os tipos de conflitos armados. Nessa publicação, após cada norma enunciada, indica-se se é aplicável a ambos os tipos de conflitos ou só a um deles, e pode constatar-se que, em boa parte dos casos, são aplicáveis tanto a conflitos internacionais como não internacionais, revelando assim uma tendência para aproximar os respetivos regimes jurídicos.

     

    Princípios fundamentais do DIH relativos à condução das hostilidades

    Do amplo acervo de normas de DIH existentes, pode retirar-se alguns princípios que constituem eixos fundamentais em torno dos quais as normas são criadas. Vamos referi-los.

     

    Princípio da humanidade

    Estando afirmado em várias disposições normativas o dever de tratar com humanidade quem é delas objeto (assim, por exemplo, o art. 13.º da III Convenção de Genebra, em relação aos prisioneiros de guerra, ou o art. 127.º da IV Convenção de Genebra, relativamente à transferência dos internados), este princípio decorre da centralidade do DIH na proteção da pessoa humana, pelo que “as necessidades da guerra devem deter-se perante as exigências de humanidade”. Este é o princípio base ou fundamental do DIH, no sentido que dele decorrem todos os outros e que ele constitui o diapasão pelo qual é orientada a própria elaboração do DIH, bem como a interpretação das suas normas.

     

    Princípio da distinção

    Este princípio foi afirmado ainda antes do surgimento do DIH, como pode ver-se, inter alia, na obra de Jean-Jacques Rousseau Le Contrat Social, que distingue claramente aqueles que estão em armas daqueles que as depuseram, “sobre os quais nenhum direito de vida ou de morte subsiste”. Está hoje claramente afirmado no art. 48.º do I PA, em que, sob a epígrafe “Regra fundamental”, se dispõe: “De forma a assegurar o respeito e a proteção da população civil e dos bens de carácter civil, as Partes no conflito devem sempre fazer a distinção entre população civil e combatentes, assim como entre bens de carácter civil e objetivos militares, devendo, portanto, dirigir as suas operações unicamente contra objetivos militares”. Torna-se, portanto, essencial determinar quem é civil e quem é combatente, assim como quais são os bens de carácter civil e os objetivos militares.

    De acordo com o art. 43.º do I PA, são combatentes os membros das forças armadas de uma Parte num conflito, com exceção do pessoal sanitário e religioso; sendo que as forças armadas de uma Parte integram de todas as forças, grupos e unidades armadas e organizadas, colocadas sob um comando responsável pela conduta dos seus subordinados perante essa Parte, ainda que seja representada por um governo ou uma autoridade não reconhecidos pela Parte adversa, devendo estar submetidas a um regime de disciplina interna que assegure, nomeadamente, o respeito pelas regras do DIH. Do facto de ser combatente decorre o direito de participar diretamente nas hostilidades, pelo que não poderão ser julgados por essa participação (embora o possam por crimes alegadamente cometidos no decurso dessa participação) e são também alvo legítimo do fogo inimigo. Por outro lado, se caírem em poder do inimigo têm direito a que lhes seja reconhecido o estatuto de prisioneiro de guerra. Todavia, este estatuto só é aplicável em caso de conflitos armados internacionais, não estando previsto nem no art. 3.º comum às Convenções de Genebra, nem no II PA (onde também não se encontra a palavra “combatente”). Por seu lado, os civis são definidos por via negativa, ou seja, aquele que não é combatente é civil, sendo a população civil o conjunto das pessoas civis (cf. art. 50.º I PA). No que se refere à sua proteção, determina-se que devem estar protegidas contra os perigos resultantes de operações militares, pelo que não devem ser objeto de ataque, sendo ainda proibidos atos ou ameaças de violência dirigidos a espalhar o terror entre a população civil. Como decorre desta proteção, proíbem-se os ataques indiscriminados. Diga-se que a proteção conferida aos civis cessa se os civis participarem diretamente nas hostilidades e enquanto durar essa participação (arts. 51.º do I PA e 13.º do II PA). E porque não é fácil determinar em que se traduz a participação direta nas hostilidades, nem quando se inicia ou cessa essa participação, o CICV publicou, em 2009, um documento intitulado Guia para Interpretar a noção de Participação Direta nas Hostilidades segundo o Direito Internacional Humanitário, redigido pelo seu assessor jurídico, Nils Melzer. Tendo em conta este princípio, bem se percebe que tenham sido adotados tratados proibindo armas cuja utilização é incompatível com o respeito pelo princípio da distinção, como, inter alia, as armas de destruição maciça, as minas antipessoais ou as munições de dispersão.

    Há, porém, que ter em conta que cada vez se torna mais difícil o respeito por este princípio, o que não atenua a sua importância, mas exige um esforço acrescido por parte dos combatentes. Desde logo, o facto de ter sido aceite a guerra de guerrilha em conflitos internacionais contribuiu para ofuscar a distinção entre civis e combatentes. A verdade é que, para facilitar a distinção entre civis e combatentes, estes, quando participavam em confrontos usavam sinais que os distinguiam quer da população civil, quer dos combatentes da parte adversa, o que se traduzia no uso de um uniforme próprio. Todavia, o n.º 3, art. 44.º, do I PA vem reconhecer a existência de situações em que, tendo em conta a natureza das hostilidades, não é possível a distinção do combatente (e pensava-se, sobretudo nas lutas pela autodeterminação dos povos das colónias), caso em que o combatente mantém esse seu estatuto desde que use as armas abertamente em cada recontro militar, bem como durante o tempo em que estiver à vista do adversário quando tome parte num desdobramento militar que preceda o lançamento do ataque em que deva participar. Além disso, do que deixamos afirmado quanto às caraterísticas dos atuais conflitos internos (guerra/conflitos armados), bem se percebe que a distinção entre civis e combatentes é muito problemática.

    No que se refere aos bens, torna-se necessário distinguir entre objetivos militares e bens de carácter civil. Os primeiros estão definidos no art. 52.º, n.º 2, do I PA, como aquele que “pela sua natureza, localização, destino ou utilização contribuam efetivamente para a ação militar e cuja destruição total ou parcial, captura ou neutralização ofereça, na ocorrência, uma vantagem militar precisa”. Portanto, pode haver bens que, pela sua natureza, são de carácter civil (como uma escola ou um teatro) que tornam objetivos militares, por exemplo, pela sua utilização (se estão a ser usados, inter alia, como abrigo de combatentes ou como depósito de armas), embora se estabeleça uma presunção no sentido de que, em caso de dúvida, deve entender-se que um bem normalmente afeto ao uso civil não será utilizado com o propósito de trazer uma contribuição efetiva à ação militar. Os bens de carácter civil são, também eles, definidos pela negativa, pelo que são todos aqueles que não constituam objetivos militares. De acordo com este princípio, os ataques devem ser estritamente limitados aos objetivos militares, salvaguardando, portanto, os bens de carácter civil.

     

    O princípio da necessidade

    Este princípio comporta duas dimensões.

     

    O princípio da necessidade em sentido estrito ou da limitação da ação hostil

    Neste sentido, o princípio traduz-se na ideia de não deve ser feito nada mais do que o necessário para alcançar o objetivo visado. Esta conceção aprece vertida na Declaração de São Petersburgo, de 1868, quando afirma que “este objetivo [o enfraquecimento das forças militares do inimigo] será excedido pelo uso de armas que agravem inutilmente os sofrimentos dos homens postos fora de combate ou torne a sua morte inevitável”, pelo que o uso de armas que provocassem esses efeitos “seria contrário às leis de humanidade”. Sendo certo que o necessário se afere pelo fim visado, há que ter em conta que um comportamento que se apresenta como necessário pode ser ilícito se, por exemplo, for levado a cabo com recurso a armas proibidas; e ainda que face a dois comportamentos, em abstrato, lícitos se deve atender a que, na sua concretização, só o é aquele que for suficiente para alcançar o objetivo e se revele o menos gravoso, pelo que não se permitem os sofrimentos desnecessários.

     

    O princípio da precaução

    Nesta dimensão, exige-se que, antes de levar a cabo um ataque, se verifique se os alvos são efetivamente objetivos militares, se tomem todos os cuidados possíveis na escolha dos meios e métodos de combate, e que o ataque seja cancelado ou suspenso se se torna manifesto que o alvo não é um objetivo militar ou que o ataque violaria o princípio da distinção ou da proporcionalidade ou ambos. Além disso, deve haver aviso prévio, se as circunstâncias o permitirem. Deve ter-se ainda em consideração que, em caso de dúvida acerca do estatuto de civil ou combatente de um indivíduo, ou acerca da natureza, finalidade ou uso de um objeto ordinariamente civil se deve presumir que essa pessoa é civil ou objeto é um bem de carácter civil (cf. arts. 50.º, n.º 1, e 52.º, n.º 3, do I PA, respetivamente).

     

    Princípio da proporcionalidade

    Este princípio fundamental do DIH não surge expressamente afirmado nos documentos que integram este ramo do Direito Internacional, mas encontra-se pressuposto em várias das suas disposições. Neste sentido, atente-se no disposto no art. 51.º, n.º 5, do I PA, em particular na sua alínea b). Depois de, na alínea a), se considerar ilícitos os bombardeamentos que “tratem como objetivo militar único um certo número de objetivos militares nitidamente separados e distintos, situados numa cidade, aldeia ou qualquer outra zona contendo concentração análoga de pessoas civis ou bens de carácter civil”, a alínea b) determina a ilicitude dos “ataques de que se possa esperar venham a causar incidentalmente perda de vidas humanas na população civil, ferimentos nas pessoas civis, danos nos bens de carácter civil ou uma combinação destas perdas e danos, que seriam excessivos relativamente à vantagem militar concreta e direta esperada”. Desta norma decorre que o critério para aferir da proporcionalidade de um ataque é a vantagem militar concreta e direta esperada do mesmo, pelo que um ataque não pode ser qualificado como desproporcional pelo facto de ter causado danos sensivelmente superiores àqueles que essa parte sofreu. O que se exige é que seja feita uma ponderação entre as perdas de vidas humanas na população civil, ferimentos nas pessoas civis, danos nos bens de carácter civil ou uma combinação destas perdas e danos que podem ser esperados de um ataque, por um lado, e a vantagem militar concreta e direta esperada desse ataque, por outro, devendo o ataque ser suspenso se, dessa avaliação, resulta que os danos referidos se revelam claramente excessivos face à referida vantagem militar.

    Portanto, o princípio da proporcionalidade não proíbe os danos colaterais (aliás, atendendo às caraterísticas dos conflitos armados atuais, não são fáceis os ataques sem danos em civis ou bens de carácter civil). O que proíbe, isso sim e de forma clara, são os danos colaterais excessivos. Diga-se que, na avaliação desta natureza excessiva, ou não, dos danos colaterais há sempre uma inegável dose de subjetividade, sobretudo na “zona cinzenta” entre o claramente excessivo e aquele em que claramente não há excesso. Por outro lado, tenha-se em conta o papel fundamental que os legal advisers podem desempenhar nessa avaliação.

     

    A Cláusula Martens

    Esta cláusula é da maior importância no âmbito do Direito Internacional Humanitário. Foi estabelecida na Segunda Convenção da Haia, de 1899, que tem como anexo o regulamento relativo às leis e costumes da guerra em terra. Aquando das negociações desta Convenção, gerou-se entre os plenipotenciários dos diferentes Estados uma oposição, mais precisamente entre importantes potências militares e Estados mais pequenos acerca do estatuto dos civis que pegassem em armas contra uma força ocupante. Não tendo sido possível chegar a um consenso, o delegado russo Fyodor Fyodorovich Martens propôs a inclusão de uma cláusula, no preâmbulo da referida Convenção, determinando que, “Até que um código mais completo das leis da guerra possa ser estabelecido, as Altas Partes Contratantes consideram oportuno constatar que, nos casos não abrangidos pelas disposições regulamentares por Elas adotadas, as populações e os beligerantes permanecem sob a salvaguarda e sob o império dos princípios do direito internacional, tal como resultam dos usos estabelecidos entre nações civilizadas, das leis de humanidade e das exigências da consciência pública”. E explicava-se, nesse mesmo preâmbulo, a razão de ser da inserção dessa cláusula: “não poderia caber nas intenções das Altas Partes Contratantes que os casos não previstos fossem, por falta de estipulação escrita, deixados à apreciação arbitrária daqueles que dirigem os exércitos”. E, quando uma versão do regulamento em causa foi desenvolvida e adotada pela Quarta Convenção de Haia, de 1907, essa cláusula manteve-se no seu preâmbulo. Trata-se de um princípio da maior importância, até porque, para além da situação especifica em que não houve acordo, os plenipotenciários tinham consciência de que nem todos os aspetos da guerra estavam regulados naquela convenção. Portanto, esta cláusula, e mau grado as dificuldades de interpretação que surgiram, vem impedir a alegação da falta de uma específica regulamentação de determinada matéria como via para que tudo seja permitido.

    Aquando da adoção das quatro convenções de Genebra não encontramos a inserção de uma clausula geral idêntica (houve mesmo em colocasse em questão a sua utilidade, dado que se previa que ela vigorasse até que fosse estabelecido um código mais completo das leis da guerra, o que alegadamente fora conseguido pela subscrição daqueles textos). Todavia, em todas essas convenções, nas normas que preveem a possibilidade de denúncia (arts. 63.º, 62.º, 142.º e 158.º da I, II, III e IV Convenções, respetivamente) é afirmado que a mesma “[n]ão terá qualquer efeito sobre as obrigações que as Partes no conflito serão obrigadas a desempenhar em virtude dos princípios do direito das gentes, tais como resultam dos usos estabelecidos entre os povos civilizados, das leis de humanidade e das exigências da consciência pública”. Obviamente, a referência a “povos civilizados” tornou a redação desta cláusula desadequada aos novos tempos, pelo que uma redação mais adequada foi plasmada no n.º 2 do art. 1.º do I PA, onde se lê: “Nos casos não previstos pelo presente Protocolo ou por outros acordos internacionais, as pessoas civis e os combatentes ficarão sob a proteção e autoridade dos princípios do direito internacional, tal como resulta do costume estabelecido, dos princípios humanitários e das exigências da consciência pública”.

    Refira-se, por fim, que o Tribunal Internacional de Justiça sublinhou a importância desta cláusula. No parecer que emitiu relativamente à “Legalidade do uso ou da ameaça de uso de armas nucleares”, e face à então inexistência de um tratado que regulasse estas armas, afirmou que “o Tribunal vê na cláusula de Martens, que continua indubitavelmente a existir e a ser aplicável, a confirmação de que os princípios e regras do direito humanitário se aplicam às armas nucleares”. E considera que esta cláusula “provou ser um meio efetivo para encarar a rápida evolução da tecnologia militar” (§§ 87 e 78).

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    Autora: Assunção Pereira

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