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    Doroteu de Gaza, Aba [Dicionário Global]

    O padre do deserto Aba Doroteu de Gaza, que viveu no século VI na Palestina, num sermão intitulado Sobre a Recusa de Julgar o Próximo, usou uma analogia visual, ao mesmo tempo simples e complexa (como se verá adiante), para descrever a relação entre Deus e os seres humanos, bem como a relação destes entre si e com Deus. A analogia é feita através de um círculo com diversos raios, algo semelhante a uma roda de carroça e que podemos denominar de “roda de Doroteu”. Para este asceta, Deus seria o centro do círculo e os seres humanos estariam algures nos raios da roda, que representariam as suas vidas. Quando se aproximam de Deus, ficam necessariamente mais próximos do centro, mas também mais próximos uns dos outros, fazendo com que a proximidade de Deus implique chegar mais próximo do outro. E vice-versa. Chegar ao outro significa também perceber Deus: “Imagina um círculo traçado na terra, ou seja, uma linha redonda desenhada por compasso e um centro equidistante a todos os pontos que formam  a circunferência […]. Imagina que a circunferência desse círculo é o mundo e o centro é Deus. Os raios são as vidas humanas ou os seus percursos. Quando os santos se querem aproximar de Deus caminham por esses raios na direção do centro, para as coisas do espírito, resultando que ao caminhar para o interior, aproximam-se uns dos outros ao mesmo tempo que se aproximam de Deus. Quanto mais perto estão de Deus, mais perto estarão uns dos outros; e quanto mais perto estão uns dos outros, mais perto estarão de Deus. Compreendes então o que se passará em sentido inverso, quando há um afastamento de Deus ao caminhar para a periferia, para as coisas exteriores ou para o mundo: torna-se então claro que quanto mais se afastam de Deus, mais se afastarão uns dos outros; e quanto mais se afastam uns dos outros mais se afastarão de Deus (DOROTHÉE DE GAZA, 2001, 284-287). Uma nota a respeito da autoria desta ideia: neste sermão, Doroteu não se coloca como seu autor, atribuindo antes a autoria de forma vaga – sem explicitar o autor – aos Padres da Igreja: “Deixa-me dar-te um exemplo retirado dos Padres” (DOROTHEE DE GAZA, 2001, 284). É possível que a analogia exista então num texto qualquer da Patrística.

    Ultrapassando a interpretação teológica e ética, que foi o propósito inicial de Doroteu, podemos usar esta ferramenta em muitos outros contextos, mantendo ou aumentando o valor epistemológico original. Se substituirmos, por exemplo, a centralidade de Deus por uma virtude, como a bondade ou a justiça, veremos na mesma analogia geométrica um resultado idêntico àquele proposto por Doroteu: as virtudes aproximam seres humanos entre si à medida que estes se acercam dessas mesmas virtudes. Do mesmo modo, o oposto também se verifica, ou seja, quanto mais nos afastamos da virtude mais nos afastamos do próximo. Tome-se então um outro exemplo: a verdade. Colocada no centro da roda, a verdade seria aquilo que aceitamos universalmente. A aproximação ao  centro – à verdade, neste caso – criará concordância entre aqueles que a ele se dirigem e discordância quando dele se afastam. Ainda sobre este mesmo exercício, podemos torná-lo bem mais complexo, identificando o centro da roda com a matemática, no sentido de se poder considerar a matemática como verdade universal (coincidindo com o pensamento platónico das formas geométricas e com teorias modernas que o recuperam (cf. BARROW, 2005, 252 ). A matemática não existe fisicamente (não existem números a pastar nos campos, ainda que possa ser defendida a sua existência numa outra dimensão), mas terá nessa putativa existência ideal um valor universal: concorde-se ou não, um mais um são dois, mesmo que a propaganda soviética tenha dito que dois mais dois eram cinco. Na verdade, não é um absurdo, apesar de a frase parecer caricatural: existem sistemas cujo resultado é superior à soma das partes. Porém, este tipo de resultado implica emergência de complexidade, que não seria o caso do centro, que é simples, no sentido de unidade não compósita, mas com potencial plural (partindo destas premissas, as discordâncias possíveis teriam que ver apenas com ignorância). Apesar de não existirem números na natureza, existem entidades quantificáveis. A partir do momento em que a matemática é aplicada fisicamente, pesando farinha, por exemplo (dois quilos de farinha mais dois quilos de farinha são quatro quilos de farinha), estamos automaticamente fora do centro da roda de Doroteu, pois houve uma imediata erosão da verdade. É impossível medir com precisão absoluta dois quilos de farinha, mas estamos suficientemente próximos do centro para que a maior parte das pessoas, na prática, concorde com esta pesagem. A verdade degrada-se à medida que caminhamos pelos raios da roda para a periferia da circunferência – à semelhança do emanacionismo plotiniano –, lugar puramente opinativo, no que a este assunto diz respeito. Porém, será interessante colocar algumas questões e ampliar as possibilidades que esta analogia visual nos oferece – pois é bem mais complexa do que aparenta –, nomeadamente no que diz respeito ao valor da periferia. Esquecendo a centralidade matemática, podemos fazer o exercício de colocar no centro uma teoria científica amplamente aceita. Neste caso, a discordância ou a dúvida, que se situariam na periferia, são bem-vindas, no sentido em que gerariam discussão e potenciariam a emergência de novas hipóteses, ou, o que é igualmente interessante, no caso de as alternativas colocadas pela periferia não se revelarem certas, poderem fortalecer a tese central. Ou seja, em muitos casos e exemplos diferentes, podemos contrariar a interpretação platónica que esta imagem geométrica parece favorecer, onde a periferia da roda é um lugar de sombras ou de erosão. A periferia não tem, ou não deve ter, qualquer sentido pejorativo a priori, pelo contrário, garante uma série de atributos francamente positivos como a individualidade, a discussão, a dúvida, a diferença (ou seja, os diferentes acidentes estariam na periferia, e a substância no centro – cf. WILCZEK, 2015, 67), o pluralismo, a diversidade, a ecceidade, enquanto, e em paralelo também positivo, o centro assegura a comunhão, o encontro e a verdade universal (cf. WILCZEK, 2015, 73) . Porém, há ainda que ter em consideração a possibilidade de o que tomamos como virtude ser vício disfarçado: a opinião pode ser uma notícia falsa, do mesmo modo que um centro pode ser uma “verdade” imposta por um regime autocrático (a roda de Doroteu é, como antes referido, aplicável a várias áreas e assuntos, o que inclui naturalmente a política e a ética, em todas as suas vertentes), ou ser uma causa prejudicial ou criminosa ou simplesmente errada. Nestes casos, também podemos dizer que a verdade tirânica – como um bastião político, colocado no centro da roda – aproxima aqueles que se dirigem para o ponto central, unindo e fortalecendo todos os que concordam com a autocracia opressora, dando-lhes poder para oprimir e agredir as minorias discordantes (os que não estão próximos da verdade propagada como única aceitável, isto é, aqueles que se encontram na periferia da roda de Doroteu). Num exemplo destes, a virtude estaria então na circunferência ou perto dela e o vício no centro, pois seria na periferia que encontraríamos a pluralidade democrática e a liberdade de expressão, por oposição ao autoritarismo central. Enfim, nestes casos, torna-se claro que a união e proximidade entre pessoas, que parece ter um valor positivo, não é necessariamente bom nem acontece apenas pelas boas razões, também acontece pelas piores, quando por exemplo as pessoas se agregam motivadas por uma causa eticamente reprovável ou por uma ideia errada. A História deu-nos – e seguramente continuará a dar-nos – inúmeros exemplos disto mesmo.

    Estas leituras possíveis, traçando um cenário mais complexo do que a analogia original, fazem da roda de Doroteu um mecanismo epistemológico particularmente valioso, podendo ser usado como ferramenta em inúmeras questões e diferentes áreas do saber, oferecendo alguma luz sobre variados contextos e cenários.

    Bibliografia

    BARROW, J. (2005). The Artful Universe – Expanded. Oxford: Oxford University Press.

    DOROTHÉE DE GAZA (2001). Œuvres Spirituelles. Paris: Les Éditions du Cerf.

    WILCZEK, F. (2015). A Beautiful Question: Finding Nature’s Deep Design. New York: Penguin Press.

    Autor: Afonso Cruz

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