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    Habeas Corpus Act [Dicionário Global]

    Lei aprovada pelo Parlamento inglês em 1679, com o título oficial “Uma Lei destinada a melhor garantir a Liberdade dos Súbditos e prevenir a prisão além-Mares”, mediante a qual se fixaram regras materiais e processuais para garantir a eficácia da providência de habeas corpus − um meio de defesa expedita contra privações injustificadas da liberdade originário do Direito inglês de fonte jurisprudencial (common law) –, perante a complacência dos tribunais em relação aos abusos promovidos pela Coroa. Designado pelo notável jurista inglês William Blackstone (1723-80) como “uma segunda Magna Carta”, o Habeas Corpus Act é um dos marcos históricos da afirmação dos princípios da supremacia parlamentar e da limitação do poder executivo que caracterizariam a monarquia constitucional inglesa saída da Glorious Revolution de 1688, e consolidada com a aprovação do Bill of Rights de 1689. No plano do Direito Comparado, o instituto do habeas corpus, a que o diploma de 1679 deu forma substancial, tornou-se um dos emblemas da tradição jurídica anglo-saxónica, tendo sido recebido em alguns direitos de matriz romano-germânica – entre os quais o português – por influência cultural mais ou menos acidental.

    A antiga providência de habeas corpus do common law consistia numa ordem escrita (writ) dirigida por um juiz a quem se encontrasse na posse de determinada pessoa para – literalmente – “tomar o corpo” do detido e entregá-lo ao tribunal. Embora a providência servisse vários propósitos, entre os quais o de submeter um arguido a julgamento ou possibilitar a sua deposição noutro processo, constituía também um meio de defesa contra a privação da liberdade, na medida em que qualquer súbdito podia, através dela, requerer que o fundamento da detenção fosse apreciado por um tribunal. Porém, a finalidade primordial do habeas corpus não era o de garantir a liberdade dos súbditos contra o poder executivo, mas antes o de salvaguardar a prerrogativa do monarca, responsável último pela paz e a justiça no reino; ao decretar a providência, os tribunais operavam como agentes da Coroa, afirmando a autoridade do rei para julgar definitivamente da liberdade dos súbditos.

    Em meados do século XVII, com a intensificação do conflito entre o Parlamento e a Coroa, o habeas corpus converte-se, de uma manifestação do poder régio, em instrumento e símbolo de defesa da liberdade contra o abuso do poder executivo. No capítulo 39 da Magna Carta, firmada em 1215 pelo monarca inglês João “Sem Terra” para pôr fim a um conflito com barões rebeldes, dispunha-se que “nenhum homem livre deve ser privado da liberdade […], exceto pelo julgamento dos seus pares ou pelo direito do reino”. O grande magistrado e parlamentar inglês Edward Coke (1552-1634) relacionou esta disposição antiga com a providência de habeas corpus, escrevendo que esta última constituía o meio através do qual se garantia o direito dos súbditos a não serem injustamente privados da liberdade – o mesmo é dizer, sem um processo criminal célere e equitativo. Em 1628, um ano após o célebre caso dos “Cinco Cavaleiros”, detidos por tempo indeterminado por se recusarem a conceder um empréstimo para financiar as campanhas militares de Carlos I (1600-48), o Parlamento aprovou a Petition of Right, que impugnava o direito do monarca de decretar a prisão de súbditos sem que estes fossem acusados e julgados pela prática de um crime. Pouco mais de uma década volvida, em 1641, uma lei determinou expressamente que qualquer pessoa detida pelo rei ou os seus agentes podia requerer uma providência de habeas corpus, com o fito de que os tribunais sindicassem a detenção e, em caso de ilegalidade, decretassem que o requerente fosse posto em liberdade.

    Estas primeiras iniciativas parlamentares em matéria de habeas corpus revelaram-se em larga medida inconsequentes, por razões várias, desde o facto de os juízes dependerem pessoal e funcionalmente da Coroa, ao hábito perverso de os agentes do rei encarcerarem súbditos em locais, como a Torre de Londres ou os territórios coloniais, subtraídos à jurisdição comum. Foi neste contexto histórico que o Parlamento aprovou, em 1679, no reinado de Carlos II (1630-85), o Habeas Corpus Act, uma lei que limitou drasticamente o poder executivo em matéria de privação de liberdade e adstringiu os tribunais, sob cominação de pesadas sanções, a aplicarem o regime em toda sua extensão. No preâmbulo do diploma, o Parlamento declarou que a necessidade da lei se prendia com os grandes atrasos no cumprimento das ordens de habeas corpus e os subterfúgios praticados pelos agentes da Coroa para privar a providência de alcance útil. Os objetivos, esses, eram os de garantir a liberdade das pessoas detidas sem fundamento criminal, a liberdade mediante o pagamento de caução em certos casos de menor gravidade e o direito a um julgamento célere por crimes pelos quais o detido estivesse indiciado. A lei determinava, entre outras coisas, que o carcereiro tinha um prazo de três dias para cumprir uma ordem de habeas corpus, prevendo sanções pecuniárias pagas ao preso em caso de incumprimento; disposições destinadas a evitar abusos comuns, como a detenção em período de férias judiciais, a libertação seguida de nova detenção com o mesmo fundamento ou o transporte do preso para locais subtraídos à jurisdição comum; e sanções pecuniárias para os juízes que não observassem a lei.

    As disposições mais importantes diziam respeito ao dever de os tribunais libertarem os detidos acusados da prática dos crimes mais graves, nomeadamente o crime de traição, se não fossem acusados e julgados num prazo razoável, geralmente de três a seis meses. O principal desiderato da lei de 1679 era o de impedir a Coroa de manter os seus adversários políticos, sobretudo membros do Parlamento, em cativeiro por tempo indeterminado. Não se tratava propriamente de defender a liberdade individual contra o uso arbitrário do poder de detenção, mas de o Parlamento chamar a si a decisão numa matéria que até então se inscrevia na esfera do executivo. Tanto assim que o direito de requerer a providência e as garantias substanciais de liberdade previstas na lei podiam ser contornados pelo Parlamento, através de dois expedientes que vieram a ser usados com regularidade: por um lado, a condenação de uma pessoa através de uma lei sentenciadora (bill of attainder), sem nenhuma das garantias de defesa próprias de um processo penal equitativo, como sucedeu com o filho de Carlos II, o duque de Monmouth (1649-85), pretendente ao trono inglês condenado e executado sem julgamento em 1685; por outro lado, a aprovação de leis que suspendiam as garantias do habeas corpus, concedendo ao poder executivo a prerrogativa extraordinária e temporária de deter suspeitos sem culpa formada, uma prática que se iniciou logo após a Revolução de 1688, para reprimir os partidários da dinastia Stuart (os “jacobitas”). O Habeas Corpus Act privava o rei do poder de ordenar a detenção dos “inimigos do reino”, mas não impedia que o Parlamento fizesse algo de semelhante – com a diferença significativa de que o poder parlamentar tendia, por natureza, a ser bastante mais moderado, pois a aprovação de uma lei sentenciadora ou suspensiva sempre implicaria o concurso de maiorias em ambas as câmaras (comuns e lordes) e a sanção do monarca.

    A lei de 1679 aplicava-se exclusivamente aos casos de natureza criminal, ou seja, aqueles em que a detenção, geralmente por agentes da Coroa, se fundava em indícios da prática de crime ou no perigo de que um crime viesse a ser cometido. Para os demais casos de privação da liberdade, como o internamento de um indivíduo num hospício, o confinamento de uma religiosa num convento, a entrega de uma criança a um orfanato ou a condição dos escravos nos territórios sob soberania inglesa, continuava a usar-se da antiga providência de habeas corpus do common law, aprimorada pela adaptação jurisprudencial das soluções que constavam da lei. Em todo o caso, em 1816, no reinado de Jorge III (1738-1820), o Parlamento aprovou uma lei que estendeu a providência além do domínio criminal. Desta influência recíproca e funcionamento simbiótico entre o writ jurisprudencial e a legislação de habeas corpus resultou um sistema abrangente de tutela da liberdade, que mereceu de A. V. Dicey (1835-1922) – a referência doutrinária clássica do constitucionalismo insular – a observação de que, no Direito inglês, ninguém podia ser detido ou encarcerado sem uma justificação extraordinária, como a indiciação pela prática de um crime grave ou a privação da liberdade por sentença transitada em julgado. Assim, a providência de habeas corpus tornou-se largamente sinónima do direito à liberdade pessoal – de certa forma corroborando o lugar-comum de que a tradição jurídica anglófona, animada por um espírito pragmático e formada a partir da experiência dos casos concretos, atribui maior importância aos meios de tutela da liberdade do que a grandes proclamações de princípio, como as da tradição constitucional de matriz francesa, historicamente nem sempre acompanhadas de tradução prática integral.

    Em 1701 e 1782 – respetivamente – a Escócia e a Irlanda (esta após 13 tentativas fracassadas pela intervenção do Conselho Privado da Inglaterra) viriam a adotar instrumentos legislativos de conteúdo e alcance semelhantes aos da legislação inglesa de habeas corpus. Os reinos da Escócia e da Inglaterra, até então independentes, ainda que com o mesmo monarca, viriam a constituir a união real da Grã-Bretanha, com a aprovação das leis de união pelos parlamentos inglês (em 1706) e escocês (em 1707). O mesmo sucedeu, em 1801, entre os reinos da Grã-Bretanha e da Irlanda, que constituíram o Reino Unido. Entretanto, do outro lado do Atlântico, várias iniciativas das colónias inglesas no sentido de adotarem ou invocarem o regime inglês de habeas corpus colidiram com a intransigência da Coroa em reconhecer aos colonos os “direitos, liberdades e imunidades” dos súbditos do monarca nascidos em Inglaterra. A partir da declaração da independência dos Estados Unidos da América, em 1776, a providência de habeas corpus foi recebida nas ordens jurídicas de vários dos Estados, umas vezes por consagração constitucional expressa, outras mediante a aprovação de legislação específica, e ainda outras através de decisões judiciais tomadas no âmbito do common law.

    Em 1787, representantes dos 13 Estados, reunidos em Filadélfia para a revisão dos artigos da Confederação, acabaram por aprovar a Constituição dos Estados Unidos da América, ratificada em 1788 e entrando em vigor em 1789. A secção 9 do art. 1.º da Constituição estabelecia que “[o] privilégio da providência de habeas corpus não será suspenso, exceto quando, em caso de rebelião ou invasão, a segurança pública o justificar”, seguido de “[n]ão será aprovada nenhuma lei sentenciadora [bill of attainder] ou retroativa [ex post facto]”. Com esta disposição, os constituintes norte-americanos não só outorgavam dignidade constitucional à providência de habeas corpus, como limitavam significativamente o poder de o Congresso limitar a sua eficácia através dos instrumentos habituais da prática parlamentar inglesa, que tinham sido usados contra os rebeldes durante a Guerra da Independência (1775-83). No n.º 85 d’O Federalista, Alexander Hamilton (1755 ou 1757-1804), respondendo à objeção de que o texto constitucional não integrava um catálogo de direitos fundamentais (aditado pouco mais tarde, em 1789, sob a forma de dez “emendas”), observou que a providência de habeas corpus e a proibição da retroatividade das leis constituíam garantias da liberdade individual bem mais significativas do que “volumes de aforismos” que “soam melhor num tratado de ética do que numa constituição política”.

    A influência norte-americana terá sido decisiva para a ampla receção do instituto na América Latina. No Brasil, onde a providência corresponde atualmente a um imenso volume processual, o habeas corpus foi introduzido pelo Código de Processo Criminal de 1832, tendo alcançado a primeira consagração constitucional em 1891, após a implantação da República. Neste, como noutros domínios, os constituintes republicanos de 1911 colheram inspiração no texto constitucional brasileiro, praticamente reproduzindo, no n.º 31 do art. 3.º do articulado aprovado em 18 de agosto desse ano, a disposição relativa ao habeas corpus constante daquele. Num comentário à Constituição, publicado em 1913, Marnoco e Souza (1869-1916) declarou o seu apoio ao transplante do instituto – expressão de um “amor verdadeiro pela liberdade” −, elogiando-lhe a “extraordinária rapidez, enorme simplicidade e grande economia”; a disposição constitucional não foi, porém, regulamentada pela legislação criminal, pelo que não teve nenhuma repercussão prática. A Constituição de 1933, de acordo com o seu carácter “semântico”, manteve a referência ao habeas corpus, ainda que remetendo integralmente o conteúdo da garantia para “lei especial”. Esta só viria a ser publicada em 1945, pela pena do então ministro da Justiça, Manuel Cavaleiro de Ferreira (1911-92), que apresentou o instituto – em termos que recordam vagamente as suas origens remotas, associadas à prerrogativa régia – como meio de tutela da “Ordem” de que liberdade e autoridade participariam.

    A providência de habeas corpus veio a ser consagrada no art. 31.º da Constituição de 1976, cujo n.º 1 dispunha que “[h]averá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a interpor perante o tribunal judicial ou militar consoante os casos”. O preceito foi alterado pela IV Revisão Constitucional, em 1997, com vista a adaptá-lo à extinção dos tribunais militares em tempo de paz, prescrevendo desde então que “[h]averá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente”. A redação dos n.ºs 2 e 3 manteve-se desde a versão originária do texto constitucional, determinando o primeiro que “[a] providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos direitos políticos” – o que reflete a vocação moderna do instituto como instrumento de limitação do poder público – e o segundo que “[o] juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória” – uma manifestação da natureza expedita e urgente da providência. A regulação detalhada do instituto encontra-se hoje nos artigos 220.º a 224.º do Código de Processo Penal. Desta forma, através da influência brasileira, por seu turno mediada pela experiência norte-americana, a lei inglesa de 1679 – um dos documentos históricos do constitucionalismo moderno – legou-nos um traço permanente da constituição processual penal.

    Bibliografia

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    COSTA, E. M. (2016). “Habeas Corpus: Passado, presente, futuro”. Julgar, 29, 218-46.

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    WORDEN, B. (2009). The English Civil Wars: 1640-1660. London: Weidenfeld & Nicolson.

    Autor: Gonçalo de Almeida Ribeiro.

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