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  • Nietzsche, Friedrich [Dicionário Global]

    Nietzsche, Friedrich [Dicionário Global]

    Friedrich Nietzsche (1844-1900) nasceu em Röcken, na Saxónia-Anhalt, atual Alemanha. Formado em Filologia Clássica, que lecionou na Universidade de Basileia, Suíça, cedo se interessou por Filosofia, em especial depois da leitura da magnum opus de Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, tendo lido igualmente Kant e os materialistas da época, como F. A. Lange. Na sua atividade de filólogo dedicou vários estudos à origem da tragédia grega, que foram compilados na sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia do Espírito da Música (1872), cuja segunda parte consiste na análise da possibilidade de um renascimento da tragédia na modernidade e na Alemanha sob a égide da música de Richard Wagner. Entre 1873 e 1876 publica as quatro Considerações Intempestivas, escritos polémicos sobre a modernidade. Em 1879 aposenta-se por motivos de saúde e inicia uma vida de fugitivus errans pela Europa, alternando as suas estadias de duração variável entre a Alemanha, a Itália, a França e a Suíça. Em 1889 enlouquece em Turim. Levado para a Alemanha pelo seu amigo e colega de Basileia, Franz Overbeck, fica ao cuidado da mãe e da irmã até morrer em 1900. As suas obras escritas desde então são constituídas por aforismos, com a exceção de Assim Falava Zaratustra (1883-1885) e Para a Genealogia da Moral (1887). Sem nunca ter consagrado ao Direito uma obra específica, é essencialmente nos textos deste período que se podem encontrar elementos para uma crítica dos direitos do Homem.

    A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, decretados pela Assembleia Nacional nas sessões de 21, 22, 23, 24 e 26 de Agosto de 1789, constituiu a rutura de alcance histórico-mundial modelar realizada pela Revolução Francesa, tendo-se tornado desde então o axis mundi em torno do qual se define a evolução histórico-social. Pela primeira vez na história da humanidade, o poder político tinha no seu fundamento a vontade humana, prescindindo em definitivo de uma grandeza extra-humana, qual seja mágico-mítico, religioso ou cósmico-naturalista. Uma vez que o Direito pressupõe a pluralidade humana e as suas relações, a sociedade humana torna-se o solo em que todo o poder é chamado a justificar-se e a legitimar-se em termos estritamente imanentes. A transcendência de normas com carácter vinculativo e obrigatório está legitimamente fundada se assentar no sujeito da vontade humana, livre e autónoma, que, habilitado a celebrar contratos no Direito privado, é capaz de ser parte no contrato social, e, na qualidade de cidadão, contribuir para o acordo de vontades que deverá subjazer às normas. Assim, a crítica dos direitos do Homem incide necessariamente no estatuto dessa vontade. As diferentes esferas de ação concedidas às diferentes vontades individuais são determinadas em função desse estatuto, ou seja, são introduzidas restrições dele deduzidas. Refletindo a separação de águas operada pela Revolução Francesa, a crítica aparta-se politicamente. À direita, numa veia historicista, a vontade é limitada pela tradição, nas suas diversas declinações, caso em que o todo teoricamente indeterminado na sua essência é, legitimamente, anterior e maior do que as partes – totum analyticum – e o erro da vontade, autonomizada, deriva da falta de conformidade com ele. À esquerda, numa ótica construtivista, a vontade é limitada pelo todo determinado mas reificado, posterior e produto ilegítimo das partes – totum syntheticum – cuja insuficiência assenta numa distorção prática.

    À imagem e semelhança das primeiras críticas dos direitos do Homem, a crítica de Nietzsche versa igualmente a vontade individual. Desde as suas primícias filosóficas que se manifesta na obra do filósofo alemão uma desconfiança intrínseca quanto ao valor do indivíduo. Não se trata, porém, de um pessimismo que caucione um desvalor essencial, o que, para Nietzsche, será sempre uma forma de fixar o Homem, e por isso uma forma de niilismo, mas antes das repercussões na criatividade (o não fixo do Homem) decorrente de um desequilíbrio de forças. Já na polaridade a que recorre na sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia, o predomínio do elemento apolíneo, ou melhor, a sua vitória total, significa para o heleno a emancipação do indivíduo relativamente à tradição, ao passado ideal e a renúncia a um futuro ideal. A Antiguidade tardia é descrita nessa obra como uma forma de modernidade, entendido o termo qualitativamente e não cronologicamente, cujos traços, aliás, se manterão inalterados em toda a sua reflexão futura. O processo de dissolução de vínculos substantivos redunda no indivíduo desencarnado e que, por isso mesmo, é incapaz de permanecer em tensão e fazer escolhas existenciais. Uma vez liberto de todas as amarras, o indivíduo encontra-se desprovido de qualquer orientação, sem deixar de sentir a “ferida da existência”. Incapaz de impor a sua vontade, o “homem moderno” segue a estratégia de auto-aniquilamento da vontade reduzindo-a a um ponto temporal: o trabalho sem amanhã, a opinião alheia desresponsabilizante ou a solução de problemas irrelevantes. Feito o diagnóstico, Nietzsche revaloriza a tradição, incluindo o direito.  Na § 9 da sua obra de 1877, Aurora – Ensaio sobre os Preconceitos Morais, encontra-se uma leitura da tradição que explicita a necessidade de a vontade ter de ser educada, um processo que não deve ser entendido como uma moralização cujo conteúdo seria moderno. Sem um tal processo, o homem sucumbiria aos diferentes e contraditórios impulsos e estímulos. A moralização deve ser compreendida como a condição inicial de uma hierarquia na vontade, a qual lhe proporciona os primeiros meios de se exercer como tal, isto é, de ser ativa, saindo assim de uma condição animal de reatividade geral à natureza externa e interna. Quanto mais primitivo for o desenvolvimento cultural, isto é, quanto mais perto da animalidade, mais extenso tem de ser esse processo. Não há, pois, nas fases primitivas âmbitos de vida que se furtem à moralização. A constituição de “matérias indiferentes” pressupõe o êxito do processo de domesticação do animal humano que se reflete na criação de uma interioridade consciente de hierarquias. Antes desse estádio histórico, a obediência não tem outra origem a não ser uma fonte exterior, coletiva, que se impõe objetivamente como vontade alheia encarnada na tradição. O homem é produto da servidão cega. Há obediência porque há comando oriundo da tradição, não porque haja motivos para obedecer. A noção de motivo de obediência implica uma ponderação de ganhos e perdas que supõe já uma vontade formada, isto é, provida de hierarquia. Em tais condições, quanto maior é o sacrifício de si à tradição objetivamente vigente, mais moral é o homem. Trata-se de um processo de estruturação da vontade, cujo êxito fica provado pelo seu desaparecimento. O indivíduo surge como resultado de um processo educativo que vai perdendo o aspeto coercivo à medida que se aprofunda a interioridade, até que da dissolução na tradição surja, no final, a dissolução da tradição. Do objetivismo compacto inicial em que não há margem para o indivíduo se afirmar conscientemente passa-se a um subjetivismo radical desprovido de conteúdo, emancipando-se o viver comum desses átomos de todo e qualquer princípio que os transcenda.

    Neste caso, seguindo Nietzsche “onde o direito, porém já não é uma tradição, como é o caso entre nós, então só pode ser prescrito, obrigatório; nós todos já não temos um sentimento tradicional do direito, por isso temos de nos contentar com direitos arbitrários, que são a expressão daquela necessidade, pela qual tem de haver um direito. O mais lógico é, então, o mais aceitável em qualquer caso, por ser o mais imparcial: mesmo reconhecendo que, em cada caso, a mais pequena unidade de medida na proporção entre o delito e a pena é fixada arbitrariamente” (Humano, Demasiado Humano, § 459). A igualdade vazia, sem conteúdo legado, dado de antemão cujo valor inicial seja considerado positivo, fica entregue a uma razão formal, vazia, dilacerada entre a necessidade de um direito e a insatisfação intrínseca com qualquer direito, sempre alheio a uma determinação real, substantiva. Assim, Nietzsche postula a necessidade de um poder que sobrepuje o poder de toda e qualquer vontade – o specificum jurídico tradicional continua válido. Uma tal necessidade não colmata a brecha entre o indivíduo e a norma, pelo contrário, contribui para cavar ainda mais o abismo, uma vez que a arbitrariedade do direito empurra para o primeiro plano a pergunta: para quê? O niilismo jurídico é, pois, consequência do processo de desvalorização tradicional, visto como uma emancipação da heteronomia, que tem como respostas unilaterais e, por isso, extremadas, que tentam superar o niilismo: a obrigatoriedade absoluta e cega ou o cálculo e a gestão técnica das coisas.

    O direito imparcial implica ainda, segundo Nietzsche, uma desestabilização social permanente, dado que não havendo estatutos ou diferenças legitimadas pela tradição, a justiça deixa de ser imanente ao conjunto da vida social e passa a ser a exigência, impossível de cumprir, de atender a todas as reclamações de indivíduos em pé de igualdade e cujo destinatário é uma sociedade considerada exterior, que deveria providenciar tudo o que falta a cada qual, incluindo o reconhecimento. Os laços sociais são invalidados, uma vez que ficam subordinados à caução que lhes é dada por uma instância exterior; assim sendo, a igualdade –  o valor político-social moderno por excelência – não torna igual, contribui antes para a separação e o entrincheiramento radicais. Com base no postulado da igualdade, o subjetivismo monádico perde inclusive a referência ao ponto de vista da totalidade, que é ela mesma funcionalizada e posta ao seu serviço.

    Por outro lado, o esvaziamento subjetivo que culmina na figura da modernidade tardia por excelência, o último homem (Assim Falava Zaratustra, Prólogo de Zaratustra, § 5), caracteriza-se por uma sensibilidade doentia à diferença, na medida em que tudo o que se furte à homogeneidade perturba a fruição passiva e encerrada em si do indivíduo, ou seja, vem abrir uma porta ou uma janela na mónada. Julgando-se e querendo-se ao abrigo de qualquer alteração, que é sobretudo temporal, inerente à pergunta “para quê?”, o ponto de vista subjetivo-monádico exige da sociedade a igualização de todos com vista a apaziguar o seu sofrimento privado. Põe-se aqui, porém, uma questão, ou todos são iguais em sentido real, o que anula a necessidade da igualdade formal, e faz dos últimos homens réplicas fungíveis, o que tem como derradeira consequência o desaparecimento da sociedade como tal; ou então mantém-se a diferença real e a sociedade como tal, e, nesse caso, o último homem faz renascer permanentemente a exigência de uma igualização impossível, que se exprime na culpabilização dos outros – estádio último do desaparecimento da diferença como complementaridade tradicional; uma virtude rasteira, um arco não retesado, seria assim o resultado sinistro e irónico da imparcialidade jurídica abstrata, em cuja declinação contemporânea se reconhecem as lutas identitárias.

    Fundado neste diagnóstico, Nietzsche teria de enfrentar o problema de como instituir o meio termo, o ponto de equilíbrio, entre uma tradição objetivista e o voluntarismo subjetivista, entre um direito tradicionalista, analítico, e um direito moderno, sintético. A descrição do processo histórico conducente de um polo ao outro implica ou a aceitação pelo último homem de uma tradição a recriar, o que é uma solução vedada, por um lado, pela própria determinação da tradição como heteronomia radical, e, por outro, porque obrigaria a uma valorização da igualdade que está na base dos direitos do Homem – uma aporia, dadas as premissas de Nietzsche; igualdade essa que constitui a versão secular da igualdade cristã, reproduzindo-se ao nível especificamente político-social a crítica do cristianismo, resumidamente: vontade de fim, vontade do nada.  Uma tal impossibilidade de passar do nível descritivo para um nível prescritivo leva igualmente a ponderar a alternativa de uma “segunda inocência”, semelhante ao salto de fé kierkegaardiano, o salto do reino da necessidade para o reino da liberdade de Engels ou ao Sprung heideggeriano, mas isso implicaria, ainda mais contraditoriamente, o abandono da instância em nome da qual ambos os níveis foram isolados e relacionados: a razão.

    Bibliografia

    FINK, E. (2000). A Filosofia de Nietzsche. Lisboa: Editorial Presença.

    HEIDEGGER, M. (1998). Nietzsche. (2 vols.). Pfullingen: Neske Verlag.

    IRTI, N. (2005). Nichilismo e Concetti giuridici – Intorno all’Aforisma 459 di “Umano, troppo umano”. Napoli: Editoriale Scientifica.

    NIETZSCHE, F. (1997). Obras Escolhidas de Friedrich Nietzsche. (9 vols.). Lisboa: Relógio d’Água Editores.

    NIETZSCHE, F. (1999). Kritische Studienausgabe. (15 vols.). Org. G. Colli & M. Montinari. München/Berlin/New York : De Gruyter – DTV.

    VALADIER, P. (1998). Cruauté et Noblesse du Droit. Paris: Michalon.

    VATTIMO, G. (1990). Introdução a Nietzsche. Lisboa: Editorial Presença.

    Autor: João Tiago Proença

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