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  • Oliveira, Fernando [Dicionário Global]

    Oliveira, Fernando [Dicionário Global]

    Mais conhecido por Fernão de Oliveira (c. 1507 – c. 1585), e por ter assinado com o primeiro nome em forma arcaizante a primeira Gramática da Linguagem Portuguesa, em 1536, depois com o seu nome em português modernizado, Fernando Oliveira escreveu, além da sua obra gramatical, diversas outras obras pioneiras noutras áreas de conhecimento em Portugal: a Arte da Guerra do Mar, o relato da Viagem de Fernão de Magalhães, o Livro da Fábrica das Naus, a Ars Nautica, o Livro da Antiguidade, Nobreza, Liberdade e Imunidade do Reino de Portugal e a primeira História de Portugal.

    Nascido, segundo alguns autores, em Aveiro, ou, segundo outros, em Pedrógão Grande – segundo o próprio, na sua Ars Nautica, “gerado em Aveiro”, mas nascido em Santa Comba, tendo dado os “primeiros vagidos” na localidade de Gestosa –, recebeu formação qualificada na Ordem dos Pregadores e envergou o hábito de S. Domingos, no entanto, o seu modo de ser irreverente levou-o a deixar os Dominicanos, exercendo desde então várias profissões, desde precetor de filhos da nobreza a piloto de navegação, tendo viajado pela Europa e pelo Norte de África ao serviço de diferentes frotas navais, portuguesas e estrangeiras.

    Apesar de serem hoje reconhecidos internacionalmente os relevantes contributos científicos e técnicos patentes nas obras que nos legou, especialmente da sua obra náutica, foi também em Portugal desassombrada e inovadora a sua crítica pioneira ao esclavagismo e aos métodos e práticas da Inquisição. A sua experiência de viajante por diferentes países da Europa, então em convulsão religiosa, com a emergência do protestantismo, em particular a sua estadia na corte de Londres, sob o Governo de Henrique VIII, redefiniu as suas convicções e o seu espírito crítico, pouco conformes com o status quo e a mentalidade reinantes no Portugal do seu tempo, colocando-o à margem do poder, quando não contra os poderes vigentes. Com efeito, temos o registo, a partir do final da década de 40 do século XVI, depois de regressado já a Lisboa, do uso de ousada liberdade de opinião, expressada nas suas críticas públicas feitas à Igreja e a certos costumes da sociedade portuguesa, posicionamentos que viriam a ser denunciados ao então recém-aprovado Tribunal da Inquisição. Esta sua postura intelectual levaria, já no século XIX, o seu primeiro biógrafo, Henriques Lopes de Mendonça, a classificá-lo de “livre-pensador avant la lettre”.

    Depois de um primeiro processo inquisitorial, aberto em 1548, no qual fora acusado e condenado por professar opiniões heréticas e temerárias próximas da heresia eclesiológica anglicana e da corrente erasmista, em 1555 volta novamente a ser encarcerado nos calabouços inquisitoriais, por emitir pareceres, alguns deles ventilados na publicação da Arte da Guerra do Mar, sobre algumas estruturas, doutrinas e práticas católicas, em particular a vida monástica e os fundamentos teológicos clássicos do comércio esclavagista, então muito próspero. Oliveira denuncia o recurso hipócrita aos argumentos hauridos na doutrina teológica clássica da guerra justa, recurso muito cómodo para apaziguar as consciências católicas interessadas no tráfico de escravos. Recusando esses argumentos em voga, Fernando Oliveira desmascara a causa efetiva da expansão da escravatura na Modernidade: o interesse comercial promovido por profissionais especializados neste sector de comércio. Ao mesmo tempo, deplora a metodologia proselitista violenta utilizada na conversão ao cristianismo dos povos descobertos no quadro das viagens marítimas intercontinentais promovidas pelas potências ibéricas. Faz uma apologia radical da perspetiva mais evangélica do anúncio de Cristo pelo poder persuasivo do magistério da palavra, desvinculada do recurso à força das armas. Nas alegações professadas perante o Tribunal, tece uma ousada crítica aos estilos e à natureza do Tribunal do Santo Ofício. Perante os inquisidores, advoga destemidamente que a Inquisição deveria assumir uma postura mais evangélica, devendo por isso usar metodologias menos repressivas e mais pedagógicas, através da orientação para a verdadeira fé pelo recurso à persuasão, e não pela intimidação e pela punição impiedosa.

    O carácter pioneiro de Fernando Oliveira na crítica à escravatura e à recusa do reconhecimento de uma soberania espiritual e temporal do papa e dos reis católicos sobre os povos recém-descobertos inscreve este humanista português na linha de pensamento da Escola de Salamanca, viveiro de teólogos juristas da Escola Ibérica da Paz, e aproxima-o das teses paradigmáticas desenvolvidas em torno destas questões candentes por Francisco Vitória e Francisco Suarez. Foi, com efeito, duas vezes preso e condenado pela Inquisição, devido às suas posições contra o tráfico de escravos e às críticas que teceu abertamente contra determinados costumes da Igreja e da sociedade do tempo, que considerava pouco conformes com o Evangelho.

    Fernando Oliveira é, sem dúvida, um dos mais originais, mais avançados e mais multifacetados sábios do humanismo português. Luís de Albuquerque apelidou este humanista, caracterizando o seu carácter e o seu percurso existencial, que marcam a sua obra, de “sábio aventureiro, genial e insubmisso”, assim como precursor do pensamento crítico, cuja vida daria um enredo apaixonante para um estimulante filme de ação. Em suma, Fernando Oliveira foi, no dealbar da Modernidade e na aurora da globalização, um estudioso que fez avançar a ciência através do método de observação empírica e representa um modo de pensamento aberto no período do Renascimento português, merecendo ser considerado igualmente um dos intelectuais precursores de alguns dos princípios que estão na base da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

    Bibliografia

    ALBUQUERQUE, L. de (1987). “Fernando Oliveira, um português genial aventureiro e insubmisso”. In Navegadores, Viajantes e Aventureiros Portugueses – Sécs. XV-XVI (vol. II) (128-142). Lisboa: Círculo de Leitores/Caminho.

    DOMINGUES, F. C. (2004). Os Navios do Mar Oceano. Teoria e Empiria na Arquitectura Naval Portuguesa dos Séculos XVI e XVII. Lisboa: Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

    MENDONÇA, H. L. de (1898). O Padre Fernando Oliveira e a Sua Obra Nautica. Memoria Comprehendendo Um Estudo Biographico sobre o Afamado Grammatico e Nautographo e a Primeira Reproducção Typographica do Seu Tratado Inedito “Livro da Fabrica das Naos” Apresentada à Segunda Classe da Academia Real das Sciencias […]. Lisboa: Typ. da Academia Real das Sciencias.

    OLIVEIRA, F. (2021-2024). Obra Completa. Dir. J. E. Franco (8 vols.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

    RIBEIRO, A. S. (1999). “O pensamento estratégico de Fernando Oliveira”. In I. Guerreiro & F. C. Domingues (eds.). Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650) – Actas da IX  Reunião Internacional de História da Náutica e da Hidrografia (37-59). Cascais: Patrimónia.

    Autor: José Eduardo Franco

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