Razão de Estado [Dicionário Global]
Razão de Estado [Dicionário Global]
A origem remota do conceito de “razão de Estado” (ratio status) encontra-se na ideia clássica de uma arte (τέχνη, ars) de governar. Na filosofia antiga, tal arte reside tanto na vida política como familiar, e a sua abrangência permite distinguir três formas de governo diferentes. Em primeiro lugar, há uma forma de governo em que governante e governado, podendo ser mais ou menos hierarquizados, são, ainda assim, suficientemente iguais para terem uma relação de reciprocidade. Aristóteles chama “política” a essa forma de governo, própria da polis enquanto “comunidade de cidadãos” (Política, 1276b1-2), mas esta também estaria presente entre as relações familiares, especificamente na vida conjugal. Por isso, escreve na Política, apesar da superioridade natural do masculino sobre o feminino, o marido governa a mulher politicamente (πολιτικῶς) (1259b). A esta forma de governar contrapõe-se uma segunda forma de governo, a “despótica”, em que o governante usa o governado para um fim que só nele reside. O governo despótico (δεσποτική ἀρχή) tem como modelo o uso do corpo pela alma (1254b4) e desenvolve-se em sentido próprio no âmbito familiar, quando o senhor usa o corpo do escravo como instrumento; no âmbito político, o governo despótico é a tirania. Em terceiro lugar, existe um governo que é governação propriamente dita, remetendo para o governo “régio”, a βασιλεία do rei ou do príncipe. Este, apesar de o seu estatuto poder advir do nascimento ou de uma autoridade natural, tem sempre de cultivar virtudes que lhe permitam conservar e fazer reconhecer a sua autoridade. É esta a forma de governo presente, dentro de nós, na relação da parte superior, inteligente e racional da alma com os desejos, governando-os e aconselhando-os como um pai aos filhos (cf. Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1103a3). É também a forma de governo régia que subjaz à autoridade paterna, na família, pelo que o pai governa os filhos regiamente (βασιλικῶς) (Política, 1259b). E é também ela que, no âmbito político, requer uma arte específica, desenvolvida como τέχνη βασιλική ou “arte régia”.
Da ideia de uma “arte régia” ou de uma arte do príncipe parte, na era moderna, a conceção da razão de Estado, quando, no século XVI, se desenvolve o conceito fundador do Estado moderno: a soberania. Na obra em que este é primeiramente elaborado, Os Seis Livros da República (1576), Jean Bodin reconfigura a distinção triádica mencionada e distingue, a partir dela, entre formas de Estado (ou de república) e formas de governo. Se a forma do Estado variaria consoante o número de governantes, havendo repúblicas monárquicas, aristocráticas e populares, a forma do governo diria respeito ao modo de exercer o poder pelos governantes. Assim, seria possível distinguir entre uma forma legítima de governar – a qual se caracterizaria por “os súbditos obedecerem às leis do Monarca e o Monarca às leis da natureza, deixando a liberdade natural e a propriedade dos bens aos súbditos” – e outras duas formas de governo, distintas pelo afastamento do governante em relação à lei natural. Estas seriam, por um lado, um governo senhorial, pelo qual um príncipe “é feito Senhor dos bens e das pessoas pelo direito das armas e da guerra, governando os seus súbditos como o pai de família os seus escravos”, e, por outro, um governo tirânico, no qual o governante, “desprezando as leis da natureza, abusa das pessoas livres como escravos, e dos bens dos súbditos como seus” (BODIN, 1996, II, 34-35). É da alusão à possibilidade de o governante se afastar gradualmente da lei natural que parte a abordagem da razão de Estado. Esta desenvolve-se, poder-se-ia então dizer, a partir de um problema inicial. Estará o príncipe vinculado a uma lei natural que pode limitar, a partir de um critério moral imposto exteriormente, a sua condução dos assuntos de Estado? Ou ao governo do Estado pertencerá, pelo contrário, uma razão própria, cujas regras e princípios não estão subordinados a critérios morais alheios ao interesse do próprio Estado? A conceção de uma razão de Estado invoca precisamente as razões que o governante, sendo um príncipe soberano, não pode deixar de observar como intrínsecas à ação de governar.
A ideia de que a política tem razões próprias que podem ser estudadas e aprendidas é desenvolvida, na Itália renascentista, no livro que maiores repercussões teve no desenvolvimento do pensamento político moderno: O Príncipe, de Maquiavel (1513). Na carta em que anuncia a Francesco Vettori a sua redação, Maquiavel invoca uma arte dello stato (MACHIAVELLI, 2011, 924), uma arte política centrada na conquista e conservação do poder, cujas regras e razões não variariam na História, tal como não variaria a natureza humana, e poderiam ser aprendidas refletindo sobre exemplos passados. Por isso, encontra no legado dos antigos uma inspiração e vê neles um ensinamento em relação à independência da arte de governar face a restrições morais. Se a moral se dedicaria à reflexão sobre os fins da vida humana, e sobre como uma prática virtuosa transformaria estes fins no interior de cada homem, a política deveria partir dos homens tal como são, e não como alguns gostariam que fossem. Os homens são sempre os mesmos e querem sempre ter vantagem sobre os outros, pelo que são “ingratos, volúveis, simuladores e dissimuladores, fugidores do perigo, cúpidos do ganho” (MACHIAVELLI, 2011, 36). A arte de governar é a arte de lidar com eles, assegurando, num mundo em que as circunstâncias variam, fins que são invariáveis. É por isso que a política não se subordina à ética e que, como diz o capítulo XVII do Príncipe, caso não possa ser as duas coisas, um bom governante prefere ser temido a ser amado. É assim porque a razão política é uma razão calculadora e, deparando-se com as circunstâncias ditadas pela fortuna, deve propiciar uma “virtude”, não no sentido moral, mas no sentido da virilidade, força, impetuosidade e ousadia; numa palavra: da virtù capaz de transformar os seus reveses em oportunidades.
Ao longo do século XVI, o legado de Maquiavel na formação de uma arte de governar, completamente autónoma em relação à moral e à ideia de justiça e de lei natural, suscita uma reação que rejeitará a amoralidade da política e procurará compatibilizar, no governo, política e ética. Tendo como pano de fundo esta compatibilização, a expressão “razão de Estado” torna-se corrente, no século XVI, no decurso das reflexões em torno do modo como o príncipe deve agir. E é neste contexto que surge, pouco mais de dez anos após Bodin ter definido o conceito de “soberania” como “potência absoluta e perpétua de uma república” (BODIN, 1996, I, 179), o livro que, amplamente divulgado e rapidamente traduzido para latim, espanhol e alemão, mais contribuiu para a sedimentação do conceito: Da Razão de Estado (1589), do ex-jesuíta italiano Giovanni Botero. Botero contrapõe-se ao argumento de Maquiavel de que da arte de governar fariam parte, “se do mal é lícito dizer bem”, as “crueldades bem usadas” (MACHIAVELLI, 2011, 22). Para Maquiavel, o príncipe não deveria hesitar em ser cruel e injusto, se tal se afigurasse necessário em virtude das circunstâncias, sendo apenas imprescindível aplicar bem, de forma expedita e firme, a crueldade necessária. É certo que também lhe poderia ser útil parecer bom e justo. Mas ser ou não ser justo seria apenas uma manifestação exterior condicionada pelas circunstâncias. Para Botero, ao invés, não bastaria ao príncipe parecer justo. Ser-lhe-ia necessário, em função da própria razão de Estado, sê-lo efetivamente, tal como moderado e prudente.
Como Maquiavel, Botero encontra na arte de governar, à qual estaria subjacente a razão de Estado, a arte de “fundar, conservar e ampliar um domínio” (BOTERO, 2009, 7). No entanto, ao contrário do que pressuporia o florentino, a única maneira de o príncipe ser bem-sucedido nos seus intentos, conservando o seu poder e prolongando-o no tempo, seria ser virtuoso, garantindo o amor e a obediência daqueles que governa: “O fundamento principal de qualquer Estado”, escreve Botero, “é a obediência dos súbditos ao seu superior, e esta funda-se na eminência da virtude do Príncipe”, pois “os povos submetem-se voluntariamente ao Príncipe, em que resplandece uma proeminência de virtude”, e “ninguém se indigna de obedecer e estar abaixo de quem lhe é superior” (BOTERO, 2009, 17). O príncipe deveria cultivar as virtudes cardeais clássicas – prudência, coragem, temperança, justiça –, e seriam estas que lhe assegurariam o reconhecimento dos súbditos, imprescindível à conservação do poder. Ao estabelecer a relação entre o domínio enquanto fim próprio da razão de Estado e o cultivo das virtudes tradicionais, Botero tenta compatibilizar moral e política sem se furtar à autonomia desta. A política, enquanto arte de governar, teria um fim próprio – a conquista, a conservação e mesmo a ampliação do poder –, e esse fim determinaria uma lei cuja razão seria independente de imperativos externos puramente éticos. No entanto, o próprio exercício da razão de Estado permitiria compreender que, em virtude dos seus fins específicos e no interesse do próprio príncipe, o cultivo de virtudes morais não poderia deixar de fazer parte da própria arte da governação.
A razão de Estado, uma vez tornada expressão habitual na Europa moderna, tem, pois, subjacente a representação inicial de uma compatibilidade entre poder político e ética. Por isso, Friedrich Meinecke, no estudo clássico que dedicou à sua história, acentua que na origem deste conceito se encontra a ideia de uma articulação “entre o agir segundo o impulso do poder e o agir segundo uma responsabilidade ética”, sendo a razão de Estado “a ponte” que, estendida entre kratos e ethos, tornaria possível ao Estado “alcançar o optimum da sua existência” (MEINECKE, 1925, 6). No entanto, se é verdade que a ideia de razão de Estado se constrói a partir desta articulação, também o é que o seu desenvolvimento conduzirá à sua associação a uma “arte política” cada vez mais centrada no elemento do poder e, portanto, crescentemente alheia a limitações morais. É o desenvolvimento que conduz à política barroca do século XVII. Neste século, ao mesmo tempo que Thomas Hobbes estabelecia, no seu Leviathan (1651), que o soberano “poderia cometer uma iniquidade, mas não uma injustiça ou uma injúria em sentido próprio” (HOBBES, 1996, 124), pois seria ele a própria fonte da distinção entre justo e injusto, a razão de Estado associar-se-á à dissimulação e aos segredos de Estado, os arcana imperii.
Associada à arte de dissimular, a razão de Estado torna-se, então, a referência do governante ao agir, segundo o que for ditado pelas circunstâncias, iludindo adversários, sem por isso ter de cair nas acusações de imoralidade de que são alvo a simulação e a mentira. Como escreve o italiano Torquato Accetto, na sua obra Da Dissimulação Honesta (1641), “A dissimulação é uma indústria de não fazer ver as coisas como são. Simula-se o que não é, dissimula-se o que é” (ACCETTO, 1997, 27). Assim pensada, e apesar de não se confundir com a pura desonestidade da simulação, a razão de Estado liga-se à capacidade do príncipe para, usando o segredo, agir à margem da publicidade da lei e fazer o que se lhe afigura necessário para conservar o poder e realizar os seus fins: o chamado interesse de Estado. “Os príncipes comandam os povos, e o interesse comanda os príncipes”, escrevia o duque Henri de Rohan, huguenote ao serviço de Richelieu (cf. MEINECKE, 1925, 210). É uma razão guiada por tal interesse que se poderá estender ao que Gabriel Naudé chama “golpe de Estado”. Num Estado francês marcado pelo massacre da Noite de São Bartolomeu (1572), as suas Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado (1639) afirmavam que “o Príncipe sábio e avisado deve não apenas comandar segundo as leis; mas também acima das próprias leis, se a necessidade o requerer” (NAUDÉ, 1667, 15). Assim, o golpe de Estado seria um desenvolvimento extremo das razões de Estado: se nestas “causas, razões, manifestos, declarações e todas as formas e maneiras de legitimar uma ação precedem os efeitos e operações”, podendo-se publicar as suas máximas “antes do golpe”, o golpe de Estado levaria a razão de Estado ao ponto em que, nas ações, “a execução precede a sentença”, e “a sua principal regra seria mantê-las escondidas até ao fim” (NAUDÉ, 1667, 103-105).
A associação entre razão e segredo de Estado estará na base de um estilo de política que, na Europa do século XVII, encontrará o exemplo talvez mais perfeito na figura do cardeal Richelieu. É à representação de tal política de penumbra, fechada no segredo dos gabinetes governativos, que a era das luzes e das revoluções do século XVIII se pretenderá contrapor. A razão de Estado passa então a ser invocada como uma razão pública e esclarecida, contraposta às conspirações e segredos que só poderiam estar subjacentes ao despotismo. O Anti-Maquiavel (1740), de Frederico II da Prússia, mostra esta tentativa de, na rejeição do maquiavelismo, trazer a razão de Estado para o mundo das luzes, uma tentativa que Kant criticará como mera transposição para o mundo da razão pública, dirigido ao esclarecimento e à paz, de uma política de segredo que inevitavelmente lhe seria hostil. Esta tentativa, portanto, anunciava a passagem da razão de Estado para um ambiente político onde os seus próprios pressupostos deixariam de ter lugar. É o que mostrará também o mundo político do século XIX, marcado pelo liberalismo e pela democracia. Daí o acerto de Carl Schmitt quando, ao criticar o livro de Meinecke, afirma que “o conceito de Razão de Estado se torna estranho ao século XIX”: “Na era da política de gabinete, a política tem uma outra ‘razão’, um outro sentido e um outro estilo do que num tempo democrático, cujo tipo de política é, pelo menos metade dela, técnica da opinião pública” (SCHMITT, 1994, 58).
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Autor: Alexandre Franco de Sá