Trabalho Digno [Dicionário Global]
Trabalho Digno [Dicionário Global]
Ao longo da sua história, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a agência especializada da Organização das Nações Unidas para as questões laborais, foi aprimorando e operacionalizando a sua missão fundacional de contribuir para a justiça social, estabelecendo critérios qualitativos para o trabalho, e através disso promover a paz no mundo. Neste percurso, esses critérios foram sendo aperfeiçoados até que, em 1999, Juan Somavia, pela primeira vez, formula o conceito de trabalho digno (decent work, no original, traduzido no Brasil por trabalho decente). Fizeram parte deste caminho o Tratado de Paz de Versalhes em 1919 (Part XIII of the Peace Treaty, 1920), seu marco fundacional, a Declaração de Filadélfia (ILO Declaration of Philadelphia…, 1944), e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), aprovada em 1948 (Universal Declaration of Human Rights, 2017).
A Declaração de Filadélfia reafirmou o papel do trabalho na construção da paz, particularmente pelo seu efeito na promoção da justiça social e da dignidade humana. Rejeitou que o trabalho fosse tratado como uma mercadoria, declarou a convicção de que a pobreza de alguém se torna num impedimento à prosperidade dos outros, e realçou a legitimidade de todos os seres humanos poderem procurar o seu bem-estar material em liberdade, com dignidade, com segurança económica e em contextos de igualdade de oportunidades (ILO Declaration of Philadelphia…, 1944).
A OIT foi assim reafirmada na sua missão enquanto organização devotada a traduzir no campo laboral direitos e valores fundamentais de cada ser humano. Esta organização nasceu como resposta a situações de profunda iniquidade, consideradas causas relevantes da tensão social que teriam conduzido quer à Primeira quer à Segunda Grandes Guerras. Essa observação está contida no preâmbulo fundacional do próprio Tratado de Paz de Versalhes.
A DUDH ampliou os requisitos para a paz abrangendo a dignidade humana em geral. Dedica quatro dos seus artigos especificamente ao trabalho, definindo direitos relativos ao mesmo (arts. 4.º, 23.º, 24.º e 25.º). O art. 4.º, rejeitando qualquer forma de trabalho escravo. O art. 23.º, afirmando o direito a um trabalho justo, livremente escolhido, sem discriminação, possibilitando uma vida digna ao próprio e aos seus dependentes, e garantindo o direito à sindicalização. O art. 24.º, estabelecendo o direito a descanso e, portanto, limitando o tempo de trabalho de modo a tornar possível a vida fora do trabalho, e o art. 25.º, indicando a proteção contra o desemprego e o direito à obtenção de meios de subsistência dignos, nomeadamente em situações de doença, maternidade ou aposentação. De uma forma mais distal, os arts. 1.º (liberdade e igualdade), 3.º (vida, liberdade e segurança pessoal), 5.º (rejeição de tratamentos desumanos) e 26.º (educação) da DUDH incidem sobre aspetos que se relacionam com componentes do conceito de trabalho digno e respetivo enquadramento.
O percurso histórico da OIT expressa os múltiplos caminhos que tem feito para concretizar a sua missão (FERRARO et al., 2016). Em 1969, no 50.º aniversário da sua fundação, foi-lhe atribuído o Prémio Nobel da Paz, como reconhecimento pelo seu papel na promoção da paz (The Nobel Peace Prize, 1969). Isto constituiu uma reafirmação do papel do trabalho na promoção de justiça social e, consequentemente, da paz no mundo.
A formulação do conceito de trabalho digno constituiu um marco decisivo que condensou numa única, mas abrangente noção as ideias, as iniciativas, os múltiplos aspetos em que a OIT tinha intervindo (e continua a intervir) ao longo da sua história. A promoção do trabalho digno tornou-se, desde então, o agregador principal da agenda desta organização, sendo estas iniciativas incluídas em múltiplos documentos e ações da própria Organização das Nações Unidas. É o caso da Agenda 2030 – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (The 17 Goals, 2015) e do Pacto Global das Nações Unidas (Realization of Decent Work for all…, 2000).
Mais recentemente, tem continuado a ser destacado o nexo entre trabalho digno, empregos de qualidade e paz, embora se afirme a necessidade de uma mais sólida evidência a respeito dos detalhes dessas relações (Manter a paz através do emprego…, 2021). O trabalho é considerado um instrumento de integração social e fonte de subsistência (SOMAVIA, 1999). Através do trabalho, os cidadãos estabelecem conexões com a sociedade: ele consiste numa troca entre cada um e o sistema social, porque possibilita aos indivíduos uma participação na vida coletiva. Cada indivíduo se torna um elemento contributivo para a criação de valor e recebe uma retribuição por essa contribuição, e um fortalecimento identitário. Assim se viabiliza como cidadão autónomo. Quais são os constituintes do trabalho que o tornam digno e capaz de dar conta desta função na sociedade? O trabalho digno é estruturado por um conjunto de dez elementos substantivos (ES) que servem de base para a construção dos indicadores. A estes dez ES é acrescentado um elemento contextual, que baliza todos os outros, estabelecendo parâmetros para a sua tradução na prática (Decent Work Indicators…, 2013).
O primeiro ES do trabalho digno refere-se à existência de oportunidades de emprego, incluindo autoemprego. Este elemento estabelece o princípio de que a organização social deve ser tal, que gere oportunidades de ocupação profissional para que os indivíduos possam através dela expressar uma componente importante da sua natureza. Os indicadores decorrentes deste elemento são múltiplos e incluem a taxa de desemprego. Este elemento responde particularmente ao art. 23.º da DUDH (Decent Work Indicators…, 2013; Universal Declaration of Human Rights, 2017).
O segundo ES incide sobre remuneração adequada e trabalho produtivo. A ideia de dignidade associada a este elemento remete para a possibilidade contributiva dos trabalhadores (trabalho produtivo) como forma de expressão de humanidade. Além deste aspeto, inclui a referência à remuneração enquanto fonte de dignidade, na medida em que possibilita aos indivíduos a geração de recursos próprios para assegurar uma vida digna para si e para os seus dependentes. Os indicadores associados a este elemento substantivo incidem sobre salário mínimo e sobre diversos aspetos dos níveis remuneratórios. Remete particularmente para os arts. 4.º, 23.º e 25.º da DUDH (Decent Work Indicators…, 2013; Universal Declaration of Human Rights, 2017).
O terceiro ES menciona o tempo digno de trabalho. Subjacente a este princípio está a consideração do trabalho como uma parte da vida merecedora de proteção, mas assumindo que o trabalho não constitui a totalidade dessa vida. Os indicadores conectados com este elemento integram várias medidas de tempo de trabalho e a existência de férias sem perda da remuneração. São particularmente abrangidos por este elemento substantivo os arts. 4.º e 24.º da DUDH (Decent Work Indicators…, 2013; Universal Declaration of Human Rights, 2017).
O quarto ES refere-se à conjugação entre o trabalho, a família e a vida pessoal. A dignidade humana é vista, neste caso, como a possibilidade de experienciar a vida em diversos campos, de forma harmónica, e não apenas através do trabalho. Os indicadores associados a este elemento remetem para o tempo de trabalho, particularmente as horas extraordinárias, e a proteção à maternidade e à paternidade. Este elemento expressa os direitos contidos principalmente nos arts. 24.º e 25.º da DUDH (Decent Work Indicators…, 2013; Universal Declaration of Human Rights, 2017).
O quinto ES incide sobre o trabalho que deve ser abolido, nomeadamente o trabalho escravo, o trabalho forçado e o trabalho infantil. A dignidade humana subjacente a este elemento inclui direitos fundamentais gerais como a liberdade e a educação, particularmente presentes nos arts. 1.º, 3.º, 4.º, 5.º e 26.º da DUDH. Os indicadores associados a este ES focam a incidência de trabalho infantil e de trabalho forçado (Decent Work Indicators…, 2013; Universal Declaration of Human Rights, 2017).
O sexto ES refere-se à estabilidade e segurança no trabalho. A dignidade humana implícita neste elemento refere-se ao direito de planificação e de controlo sobre um grau desejável de estabilidade na vida. Os indicadores incidem sobre a natureza dos vínculos laborais e sobre o trabalho precário. O art. 25º da DUDH é de alguma forma contemplado neste ES, no que se refere à vida profissional das pessoas (Decent Work Indicators…, 2013; Universal Declaration of Human Rights, 2017).
O sétimo ES incide sobre a igualdade de oportunidade e tratamento no emprego e inclui indicadores de não discriminação e de igualdade salarial (para trabalho igual), nomeadamente entre sexos, mas referente também a qualquer outro tipo de categorização social pertinente. O conceito de dignidade presente neste elemento refere-se à igualdade fundamental entre os seres humanos, quer quanto a oportunidades de emprego, quer quanto à forma de tratamento, expressa nos arts. 1.º e 5.º da DUDH (Decent Work Indicators…, 2013; Universal Declaration of Human Rights, 2017).
O oitavo ES, ambiente de trabalho seguro, com indicadores especialmente ligados à incidência de acidentes de trabalho, destaca a necessidade de criação de condições de higiene e segurança que minimizem os riscos para a integridade dos trabalhadores. A dignidade presente neste ES encontra-se salvaguardada também na DUDH: os arts. 3.º e 5.º, ligados à proteção e à rejeição de tratamento desumano, expressam-se neste ES (Decent Work Indicators…, 2013; Universal Declaration of Human Rights, 2017).
O nono ES, que podemos designar segurança social, inclui indicadores de proteção social ligados à aposentação, aos cuidados de saúde, às baixas médicas, e similares. Este ES assume que a dignidade humana inclui a ideia de solidariedade entre os membros da sociedade, de tal forma que, em situação de maior vulnerabilidade, os trabalhadores recebem um apoio especial visando a sua recuperação ou, pelo menos, a manutenção de condições de vida aceitáveis e humanas. O art. 25.º da DUDH encontra-se espelhado neste ES (Decent Work Indicators…, 2013; Universal Declaration of Human Rights, 2017).
O décimo ES refere-se ao diálogo social através de representantes quer de trabalhadores quer de empregadores. Inclui indicadores ligados à taxa de sindicalização, à participação em organizações de empregadores, à incidência de greves e paralisações, e à negociação coletiva. A dignidade expressa neste ES encontra-se ligada à noção de equilíbrio de forças entre agentes com diferentes níveis de poder, que se harmonizam no diálogo social e na concertação coletiva. Além disso, a dignidade está também ligada ao direito a ter voz nas decisões que afetam a própria vida. O art. 23.º da DUDH está expresso neste ES (Decent Work Indicators…, 2013; Universal Declaration of Human Rights, 2017).
O décimo primeiro ES refere-se às condições socioeconómicas para o trabalho digno, sendo por isso de um nível diferente, porque condicionante da expressão dos demais ES. Pode ser considerado um meta-elemento substantivo. Os seus indicadores incluem o produto interno bruto per capita, o nível de desigualdade salarial, o nível de habilitações literárias da população, o nível de produtividade, a taxa de abandono escolar, a educação de adultos, a taxa de inflação, entre outros. Este ES constitui o conjunto de condições para o cumprimento pleno de todos direitos humanos porque é fortemente impactante na qualidade com que se podem colocar em prática em qualquer sociedade (Decent Work Indicators…, 2013; Universal Declaration of Human Rights, 2017).
Em síntese, o trabalho digno expressa, no campo laboral, os direitos humanos configurados na DUDH. Ele tem subjacente uma conceção de ser humano de largo espectro, em que as múltiplas dimensões da natureza humana se podem e devem expressar e desenvolver através do exercício de uma atividade laboral, colocando cada indivíduo em conexão com a sociedade. Através do trabalho, se este não for deficitário em dignidade, o indivíduo contribuiu para criar valor para os outros e recebe uma retribuição por isso que lhe possibilita ser um cidadão pleno que cumpre autonomamente as suas obrigações enquanto cidadão.
Bibliografia
“Realization of Decent Work for All: Increasing Respect for Labour Rights to ensure Decent Work for All: From Commitment to Action”, https://unglobalcompact.org/what-is-gc/our-work/social/labour (acedido a 14.03.2024).
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Decent Work Indicators: Guidelines for Producers and Users of Statistical and Legal Framework Indicators. ILO Manual (2013), https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—dgreports/—integration/documents/publication/wcms_229374.pdf (acedido a 14.03.2024).
FERRARO, T. et al. (2016). “Historical Landmarks of Decent Work”. European Journal of Applied Business and Management, 2 (1), 77-96, https://nidisag.isag.pt/index.php/IJAM/article/viewFile/129/111 (acedido a 14.03.2024).
ILO Declaration of Philadelphia: Declaration concerning the Aims and Purposes of the International Labour Organisation (1944). General Conference of the International Labour Organization, https://www.ilo.org/static/english/inwork/cb-policy-guide/declarationofPhiladelphia1944.pdf (acedido a 14.03.2024).
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Organização Internacional do Trabalho (2021). “Manter a paz através do emprego e do trabalho Digno”, https://www.ilo.org/lisbon/publica%C3%A7%C3%B5es/WCMS_819571/lang–pt/index.htm (acedido a 14.03.2024).
SOMAVIA, J. (1999). “Decent Work for All in a Global Economy: An ILO Perspective”, https://www.ilo.org/public/english/bureau/dgo/speeches/somavia/1999/seattle.htm#N_1_ (acedido a 14.03.2024).
The 17 Goals, https://sdgs.un.org/goals (acedido a 14.03.2024).
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Autor: Nuno Rebelo dos Santos