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  • Pereira, Jacob Rodrigues [Dicionário Global]

    Pereira, Jacob Rodrigues [Dicionário Global]

    Os dados biográficos de Jacob Rodrigues Pereira, particularmente os referentes ao local de nascimento, não são consensuais entre os diferentes autores. Seguiremos de perto um extenso artigo publicado por Pinheiro Chagas no jornal O Panorama, em 1867, ao longo de três números.

    Pinheiro Chagas é inquestionavelmente uma figura cimeira da cultura portuguesa. No entanto, a informação por si prestada, neste pormenor – local do nascimento –, parece-nos pouco consistente. Eis a forma, tão simples como aparentemente tão incontroversa, como o redator de O Panorama aborda a solução: “era natural de Peniche este Jacob Pereira; o ano em que saiu de Portugal não o sabemos ao certo, o motivo facilmente se adivinha. A inquisição, expulsando da pátria uma raça altiva e inteligente, espalhou por todo o mundo grandes homens, de que nos poderíamos ufanar, e que enriquecem os factos de alheias nações. Na história literária, científica e política dos países estrangeiros encontramos, muitas vezes, nomes que facilmente se reconhecem como portugueses, apesar de uma ou outra corruptela. Esses homens notáveis, que lá fora encontraram abrigo, são os judeus expulsos de Portugal pelo Santo Ofício, ou descendentes deles. É mais um favor que devemos a essa benéfica instituição” (CHAGAS, 1867, 107).

    Barroso da Fonte (1998) refere que Jacob Rodrigues Pereira nasceu em 17 de abril de 1715, “de um lar que tinha residência na antiga vila de Chacim, hoje uma modesta aldeia transmontana situada no concelho de Macedo de Cavaleiros”. Ferreira Deusdado (1995, 325) apoiando-se no testemunho de um bisneto de Jacob Rodrigues Pereira, o banqueiro Eugénio Pereira, parisiense, refere a sua data de nascimento a 17 de abril, para de imediato aludir que não é consensual o lugar onde nasceu, para se decidir pelo país vizinho, fundando a sua tese na informação extraída diretamente da boca do referido bisneto e confirmada em carta endereçada a Ferreira Deusdado: “Com efeito nasceu em Espanha no momento em que seus pais viajavam na fronteira portuguesa desse país, mas os seus progenitores e antepassados tinham casa e residência em Chacim desde o século XV, como nos afirmou oralmente em Paris no ano de 1890 o seu bisneto Eugénio Pereira, banqueiro de Paris e Conde de Pereira em Portugal, por graça de El-Rei D. Luís I” (DEUSDADO, 1995, 325).

    O facto de os pais de Jacob Rodrigues Pereira residirem temporariamente no país vizinho e de eventualmente ter nascido em Berlenga, “não exclui [afirma Ferreira Deusdado] a nacionalidade portuguesa do filho ali nascido” (DEUSDADO, 1995, 325). No que se refere a autores estrangeiros, Seguin e La Rochelle, referidos pelo autor de Educadores Portugueses, afirmam que nasceu em Berlenga, cidade da Estremadura espanhola. Amaral Cyrne, numa atitude tão nacionalista quanto apologética, aventa, no Resumo da História da Pedagogia (1881), a hipótese de que a Berlenga, citada pelos autores, seja corrupção de Berlenga (Peniche). Este autor segue “a opinião de Inocêncio da Silva e também a de Silvestre Ribeiro” (DEUSDADO, 1995, 325).

    A verdade dos factos parece vir ao de cima não só no discurso oral que Izac Pereira, neto de Jacob Rodrigues Pereira, terá proferido em 1877, onde atribui a este a nacionalidade portuguesa, mas também na carta que o bisneto do ilustre professor, o Conde Eugénio Pereira, escreveu e que Ferreira Deusdado transcreve: “Quanto à nacionalidade do primeiro professor de surdos-mudos em França, posso assegurar-vos que era português. Segundo os documentos autênticos que possuo, Jacob Pereira nasceu em Espanha, como dizes, na Berlenga, na Estremadura. Mas é importante referir que o pai e a mãe nasceram todos em Chacim (perto de Bragança), onde a família se instalou no final do século XV; que tiveram vários filhos antes de entrarem na Espanha por volta de 1698; e que o pai de Jacob Pereira chegou mesmo a regressar para morrer em Portugal, na Moita, em 1735. Os pais do meu bisavô, portanto, só passaram alguns anos em Espanha e não perderam a nacionalidade portuguesa durante a sua estadia no estrangeiro” (DEUSDADO, 1995, 325).

    Foi em França, no país de acolhimento, que Jacob Rodrigues Pereira deu o seu contributo para tão nobre causa como aquela que lhe reconhecemos – inventor do alfabeto manual para surdos-mudos. Só podia ter sido o país de Buffon, de Luís XV, de Bousset e de Descartes a abrirem-lhe as portas que a sua pátria lhe fechara com o camartelo. Pinheiro Chagas apresenta-o em plena atividade, mostrando a França o reconhecimento de lhe ter aberto as portas e lhe ter proporcionado as condições para desenvolver o talento com que a natureza o dotara: “Já em 1734 o vemos em França ocupando-se ativamente da revolução do grande problema a que dedicou a sua vida; a 22 de Novembro de 1746, um seu discípulo, de 16 anos de idade, é apresentado à Academia de Caen e excita geral espanto pela sua rápida compreensão, e facilidade das respostas. Em 1749, debaixo do patronato do grande escritor e célebre naturalista conde de Buffon, que lhe fez o mais lisonjeiro acolhimento, foi apresentado, com o mesmo discípulo, à Academia das Ciências de Paris. Esta nomeou uma comissão, que deu sobre o que presenciara o mais favorável parecer, notando que era o primeiro caso que em tal objeto se admirava. Adquirindo, por esse facto, grande nomeada o nosso compatriota, Luís XV manifestou desejos de o ver. Foi Jacob Pereira, acompanhado do mesmo discípulo, e obteve do monarca as mais lisonjeiras demonstrações de agrado. Em 1751 apresentou outro discípulo à Academia, e a 22 de Outubro, do mesmo ano, el-rei conferindo-lhe uma pensão de 800 libras anuais (libras francesas) e outra pensão igual ao primeiro discípulo. Em 1703 foi nomeado intérprete do rei para as línguas espanhola e portuguesa. Morreu em 1774, e jaz sepultado no cemitério da Villette” (CHAGAS, 1867, 107).

    A sua fama parece ter-se espalhado rapidamente pela Europa. Só em Portugal o seu nome parece ter sido anatematizado, como se de um malfeitor se tratasse: “mereceu o nosso compatriota os maiores elogios dos periódicos e dos escritores do tempo, e entre estes do mais ilustre e do menos elogioso de todos J. J. Rousseau. Quiseram vê-lo os reis da Polónia, da Suécia, da Dinamarca. Lisonjeiras demonstrações de apreço, de que Portugal se deve ufanar, e ao mesmo tempo envergonhar, pensando que um dos seus filhos mais prestantes, era em toda a parte acolhido com admiração e estima por grandes e monarcas, era proscrito da sua pátria pelo mais estúpido despotismo que nunca pesou sobre um país” (CHAGAS, 1867, 107).

    Pinheiro Chagas, depois de ter prestado tão singela homenagem ao nosso ilustre compatriota, convida-nos a um ato de humildade e reverência: “curvemo-nos agora com respeito perante um grande vulto que domina todos os seus predecessores, perante o homem que, no meio deste chãos de sistemas incompletos, soube descortinar o verdadeiro, e emancipar os surdos-mudos pelos meios singelíssimos, que a natureza mesma lhe indicava, e que Jacob Rodrigues Pereira pressentira quando inventara o alfabeto manual (CHAGAS, 1867, 107).

    Pinheiro Chagas apresenta, assim, uma admirável síntese do contributo de cada um dos protagonistas referidos, no que concerne ao aperfeiçoamento do método de ensino dos surdos-mudos, nos seguintes termos: “Jacob Rodrigues Pereira está colocado entre os dois benfeitores dos surdos-mudos, como o elo que os liga. Aperfeiçoa o sistema do primeiro Pedro Ponce de Léon (1520-1584) –, e prepara o sistema do segundo, o abade de l’Epèe (1712-1789). O seu método é ainda, para assim dizermos, individual. Cada surdo-mudo é ensinado isoladamente. O espanhol Ponce fazia com que o seu discípulo lesse nos lábios do seu interlocutor a palavra que este pronunciava, e respondesse por escrito. Jacob Pereira leva mais adiante o prodígio, consegue que o surdo-mudo responda de viva voz. As palavras que ele pronuncia, pronuncia-as sem a consciência do som que produzem. Ao movimento dos lábios que soletra no interlocutor corresponde com outro movimento dos lábios, da língua e dos dentes que formam o mecanismo das palavras. Devia ter não sei que sombrias tintas de sortilégio a cena em que o primeiro discípulo de Jacob Rodrigues Pereira pronunciou automaticamente a primeira palavra. Pareceria aos espectadores que um cadáver saía do túmulo e soltava por entre os dentes nus esses sons sibilantes e diabólicos. Temos, pois, o sistema de Ponce aperfeiçoado por Jacob Pereira; o do abade de l’Epèe, veremos que foi também preparado por ele, com a invenção que se lhe deve do alfabeto manual, auxiliar do alfabeto labial” (CHAGAS, 1867, 107).

    A brevíssima referência ao método de Pedro Ponce justifica-se e compreende-se pelo facto de Pinheiro Chagas escrever acerca do abade de Versalhes. A referência mais aprofundada acerca da vida e obra de Jacob Rodrigues Pereira compreende-se, igualmente, pelo facto de se tratar de um português votado ao esquecimento, bem como pela preocupação do jornalista de O Panorama em mostrar o êxito que o abade de L’Èpée teve num longo percurso que o precedeu: foi o caminho iniciado pelo monge espanhol e continuado pelo judeu português que permitiu ao abade de L’Èpée criar os canais que iriam permitir a comunicação, quebrando definitivamente as barreiras que isolavam estes seres humanos da convivência humana.

    Em jeito de conclusão, podemos afirmar que o sucesso de Jacob Rodrigues Pereira terá compungido o abade de L’Èpée a abraçar a causa destes miseráveis. Mais ainda, os passos dados pelos seus antecessores foram cumulativos e o êxito alcançado por um homem pode ter na base – e teve, neste caso – um caminho dificultoso, aberto e percorrido pelos primeiros: o método de Ponce, ou seja, a leitura nos lábios, era de aprendizagem longa e dificultosa, e também de difícil execução. O alfabeto manual inventado por Jacob Rodrigues Pereira revelou-se um extraordinário contributo e precioso auxiliar; mas este, como o primeiro, tinha o grandíssimo inconveniente de obrigar o mestre a explicá-los em particular a cada um dos discípulos. Foram, apesar de tudo, decisivos para o abade de L’Èpée pôr em atividade a engrenagem perra dessa máquina: percebeu-lhe os defeitos, corrigiu-os e deu o passo decisivo, inventando, assim, a nova língua, a língua dos gestos, a língua pitoresca, expressiva e animada, a língua que brotou à voz do abade de L’Èpée, a língua que espantou os surdos-mudos, a mesma língua que deslumbrou o mundo ainda incrédulo, a língua que, guiada pela mão inteligente do mestre, transformou a pobre mímica num idioma onde se continha um mundo de ideias e de revelações, um mundo, a partir de então, mais inclusivo e, consequentemente, mais humano.

    Bibliografia

    Chagas, P. (1867) “O abade de L’Èpée” . In Jornal Literário e Instrutivo “O Panorama”, 17, pp. 60-61; 106 -108; 115-117.

    Cirne, A. (1881). Resumo da História da Pedagogia, Porto.

    Deusdado, Ferreira (1995). In  Educadores Portugueses. Seguido de Esboço Histórico da Filosofia em Portugal no século XIX. Porto: Lello & Irmão.

    Fonte, Barroso (1990). In  Dicionário dos mais ilustres trasmontanos e alto durienses, tomo I. Guimarães: Editora Berço da Cidade.

    Herculano, Alexandre (1839). O abade de L’Èpée . In Jornal Literário e Instrutivo O Panorama”, 3, p. 56.

    Séguin, Eduard. Jacob Rodrigues Pereira. Premier Instituteur de sour-muets em France (1744/1780). Notice sur sa vie e ses travaux; et Analyse raisonnée sur sa méthode, précédée de L’eloge de cette methode par Buffon. Paris: J.B.Ballére, librarie de l’Academie Royale de Médicine, 1847.

    Autor: João Bartolomeu Rodrigues

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