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    Pecado [Dicionário Global]

    A noção de pecado, associada à noção de culpa, é congénita à grande maioria do universo das tradições religiosas, como nos dá conta a História e a Antropologia das Religiões. Desde as formas religiosas tribais mais primitivas, passando pelas religiões mais estruturadas teologicamente com cosmovisões e antropovisões dualistas, em que a realidade é entendida como o resultado de uma geração dos deuses, em resultado de disputas olímpicas no meio divino, o pecado e a culpa são estruturantes para a compreensão das dinâmicas da história humana. Na mundividência dualista perspetivada por estas tradições religiosas, a natureza em que o ser humano se abriga é constituída por elementos duais: puros e impuros. Assim também as ações humanas podem produzir impureza, que necessita de ser purificada para libertar a comunidade da atração do mal e/ou da ira dos deuses. Neste horizonte de compreensão do mundo, o pecado tem uma dimensão material, compaginada com uma dimensão comportamental e moral. Daí a importância, nestas comunidades, dos ritos religiosos de expiação para expurgação do mal inserto no seio da comunidade, como é o caso mais emblemático do bode expiatório e dos rituais organizados para a sua execração e expulsão para fora do perímetro de influência da tribo, da aldeia ou de uma sociedade, em ordem a purificar os que nela vivem e garantir um recomeço promissor.

    Por seu lado, a ideia de pecado desenvolveu-se e foi alvo de tematização no campo religioso e moral, com grande densidade estruturante na teologia e na moral judeo-cristã, com grande pregnância social, cultural e mental no Ocidente cristão, mas também marcante no quadro de outros universos religiosos e civilizacionais herdeiros das religiões criacionistas, também chamadas “religiões do livro” ou de tradição abraâmica (judaísmo, cristianismo e islamismo).

    Fundamentalmente, o pecado é entendido na prática como o não cumprimento dos mandamentos divinos, da vontade divina, que acabou por ser a expressão da tendência do ser humano para praticar o mal, quando poderia optar por fazer o bem. Esta predisposição teria sido impregnada primigeniamente na condição do ser humano como ser criado em resultado de uma falha matricial, consubstanciada na noção de pecado original de desobediência a um mandato divino. No fundo, o pecado é o que decorre do mau uso do maior privilégio concedido por Deus ao homem: o livre arbítrio ou a capacidade de optar por escolher ser cuidador e continuar a construção da realidade criada ou ser o seu destruidor ou desarmonizador.

    Ora, a teologia judaico-cristã tem como tábua primeira da lei divina matricial mosaica, patente na Torá bíblica, os dez mandamentos. Estes tornaram objeto central de veneração e de respeito, em nome da ordem social e cósmica, aquilo que podemos chamar, avant la lettre, os direitos de Deus e os direitos dos homens, que são resumidos no Novo Testamento pela boca de Jesus Cristo, pelo amor a Deus compaginado com o amor ao próximo, sendo o dever de amar e, por essa via, o dever da fraternidade entre os seres humanos, a mais sublime prova da expressão da fé em Deus. Alguns princípios subjacentes aos direitos humanos proclamados contemporaneamente têm já a sua matriz em alguns aspetos nos mandamentos judaicos. Ora, o pecado acaba por ser uma caracterização religiosa de comportamentos individuais e sociais que atentam contra a dignidade humana e dos valores que violam essa mesma dignidade em diferentes dimensões fundamentais, como o direito à vida, à proteção, ao bom nome, entre outros.

    A doutrina social da Igreja Católica veio aprofundar a visão do pecado, na perspetiva de denunciar os sistemas de injustiça e corrupção que promovem situação de desigualdade e desequilíbrio nas sociedades, tendo desenvolvido o conceito de pecado estrutural. Bem representativas desta hodierna perspetivação do pecado, com forte dimensão social e ecológica, na linha do Concílio Vaticano II, podemos destacar o Papa Paulo VI, o Papa João Paulo II, o Papa Bento XVI e o Papa Francisco, em encíclicas emblemáticas como a Poppulorum Progressio, a Centesimus Anus, Deus caritas est, Laudato si e Fratelli Tutti, em que perscrutam as causas dos desequilíbrios e desigualdades globais e propõem caminhos de transformação, assumindo a defesa incondicional do articulado na Declaração Universal dos Direitos Humanos. De algum modo, nesta nova definição das condições para construir uma humanidade nova, ou a Civilização do Amor, como definiu Paulo VI, é importante identificar e vencer os pecados estruturais. No respeito exímio pela dignidade humana e a vivência efetiva dos direitos humanos que aquela fundamenta, está o caminho para essa construção de um mundo melhor, mais justo e mais fraterno.

    Ainda uma nota final que merece ser refletida nesta compreensão do pecado na relação com os direitos humanos. O pecado liga-se à questão do perdão e à possibilidade do perdão, que a tradição religiosa judaica cristã tem como ponto de fuga fundamental para a renovação da vida e para garantir um recomeço mediante determinadas condições. Se o pecado, em perspetiva religiosa, poderá ser, em certa medida, uma forma de atentar contra os direitos humanos, também pode ser visto paradoxalmente como um “direito humano”, ou seja, como o direito a pecar intimamente relacionado com o direito a ser perdoado. A condição imperfeita do pecador merecerá ser considerada em face do papel, relevante, do arrependimento e, por consequência, também, do direito ao perdão, ou seja, o pecador merece ter a oportunidade de refazer a vida. Este entendimento antropoteológico da relação intrínseca entre pecado e perdão teve reflexo no Direito Penal e no ordenamento jurídico de diversos países, nomeadamente, de tradição ocidental, e é importante para compreendermos alguns aspetos do articulado dos Direitos Humanos.

    Bibliografia

    Conselho Pontifício Justiça e Paz (2006). Compêndio da Doutrina Social da Igreja. São João do Estoril: Principia.

    GIRARD, R. (2020). O Bode Expiatório. Lisboa: Edições 70.

    LADARIA, L. F. (1993). Teologia del Pecado Original y de la Gracia: Antropologia Teológica Especial. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos.

    VAZ, A. (2011). O Sentido da Vida Projetada nas Origens: Em vez de ‘História de Adão e Eva’. Marco de Canavezes: Carmelo.

    Autor: José Eduardo Franco

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