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    Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos [Dicionário Global]

    I. A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (doravante Carta Africana) é um tratado regional de direitos humanos adotado no quadro da então Organização de Unidade Africana (OUA) em 1981. A Carta Africana assume particular relevância para a consolidação de uma cultura de direitos humanos em África, bem como o seu contributo para o Direito Internacional dos Direitos Humanos. O processo político que conduziu à adoção da Carta Africana foi longo e bastante controverso. Os quatro séculos de dominação colonial europeia no continente africano deixaram marcas profundas e nunca os direitos humanos foram tão essenciais para África como no período após as descolonizações. Apesar disso, a Carta da OUA, adotada a 25 de maio de 1963, preocupa-se fundamentalmente em afirmar os princípios da não ingerência nos assuntos internos dos Estados, bem como da intangibilidade das fronteiras coloniais. Esta opção dos pais fundadores da OUA determinou, por um lado, que os direitos humanos ocupassem uma posição menor nas políticas do continente, mas também que a organização fosse uma testemunha passiva das atrocidades de marcaram as décadas seguintes em África, como foi o caso do genocídio no Ruanda.

    A ideia acerca da adoção de um tratado regional africano de direitos humanos remonta ao ano de 1961, estando plasmada numa resolução adotada no Congresso de Juristas Africanos, uma iniciativa da organização não governamental International Commission of Jurists. Esta resolução, conhecida como “Lei de Lagos”, referia a necessidade de adoção de uma Convenção Africana de Direitos Humanos, prevendo ainda um tribunal regional como mecanismo de efetividade e salvaguarda (GARRIDO, 2020, 320-321). No entanto, as aspirações de Lagos não tiveram eco na Carta da OUA, que apenas se refere à Declaração Universal dos Direitos Humanos como diretriz orientadora da cooperação internacional entre os Estados membros da organização. Assim, os direitos humanos não foram uma prioridade em 1963, privilegiando-se a proteção do Estado, na sua maioria Estados recém-independentes, em detrimento de uma visão centrada na proteção do indivíduo (BALDÉ, 2017, 19). Aliás, a Carta Africana reflete uma mundivisão fortemente enraizada nos valores da coletividade, que relevam aquela que é a proteção devida aos indivíduos. Esta perspetiva, de natureza filosófica universalista, está consagrada no preâmbulo da Carta Africana quando reconhece que os direitos humanos emanam dos indivíduos, mas que estes direitos apenas podem ser garantidos pela realização dos direitos dos povos (ALBUQUERQUE, 2020, 8-9). Esta é uma das inovações assinaláveis da Carta Africana, trazendo para os direitos humanos a proteção a grupos ou coletividades – no caso, os povos – quando até estes eram cimentados numa visão filosófica individualista. Assim, a Carta Africana afirma-se como um tratado que protege duplamente os direitos humanos das pessoas, prevendo a proteção do indivíduo de forma integrada na coletividade, ou seja, garantindo-lhe direitos individuais, mas também direitos enquanto membro pertencente a um determinado coletivo ou grupo.

    Mesmo após a entrada em vigor da Carta Africana, os direitos humanos continuaram a ser amplamente negligenciados pelos Estados, muitas vezes atores materiais dessas violações. As disputas de poder a nível interno, as convulsões sociais, as mudanças inconstitucionais de regimes os conflitos armados são alguns exemplos de atropelos grosseiros aos direitos humanos no continente africano. Esta situação viria a alterar no final da década de 90 do século XX, quando os “ventos de mudança” (VILJOEN, 2012, 161) trouxeram uma nova centralidade destes direitos na política interna e internacional africana: a criação da União Africana (UA), cujo ato constitutivo consagra os direitos humanos – invocando em especial a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos – como basilares para a nova política africana. A UA, diferentemente da sua antecessora, tem uma ação muito mais interventiva, afastando-se da política da não interferência nos assuntos dos Estados para uma de não indiferença face a violações graves de direitos humanos.

     

    II. A Carta Africana reflete uma mundivisão africana de direitos humanos. Essa assenta, por um lado, no comunitarismo que caracteriza muitas sociedades africanas, com forte influência do grupo. A luta contra o colonialismo, sobretudo a escravatura e a negação da dignidade humana, foi de tal ordem impactante que, mesmo décadas após as descolonizações – com exceção do Saara Ocidental – essa referência encontra-se vertida no preâmbulo da Carta Africana. Assim, o preâmbulo reafirmou os valores fundamentais da Carta da OUA, nomeadamente “eliminar sob todas as suas formas o colonialismo da África”. A Carta seguirá este fio condutor, sobretudo no capítulo referente aos direitos dos povos.

    Por outro lado, o preâmbulo oferece-nos outra pista acerca da importância dos valores comunitários, referindo que os direitos humanos em África devem ter em consideração “as virtudes [das] tradições históricas e os valores da civilização africana que devem inspirar e caracterizar as suas reflexões sobre a concepção dos direitos humanos e dos povos”. Esta afirmação tem alimentado algum debate acerca de com conceito específico de direitos humanos em África, isto é, que saber se, e em caso afirmativo, quais os direitos humanos que podem ter um significado distinto nos países africanos face ao que assumem em outras latitudes do globo. Em todo o caso, é importante reafirmar a universalidade, indivisibilidade e inalienabilidade dos direitos humanos, sob pena de os fragmentar e esvaziar de sentido. E também neste sentido aponta o preâmbulo da Carta Africana quando refere que “os direitos civis e políticos são indissociáveis dos direitos económicos, sociais e culturais, tanto na sua concepção como na sua universalidade, e que a satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais garante o gozo dos direitos civis e políticos”. Tendo em consideração o período histórico da Guerra Fria, em que se uma profunda bipolarização ideológica no mundo, com reflexos no sistema de proteção universal da ONU que consagrou os direitos económicos, sociais e culturais (DESC) e os direitos civis e políticos (DCP) em pactos distintos, na concepção da Carta Africana estes direitos são indissociáveis e previstos com igual força jurídica (PIRES, 1999, 336). Na verdade, como tem sido possível observar, os direitos previsto na Carta Africana são todos justiciáveis (VILJOEN, 2012, 214). Outro aspeto inovador da Carta Africana é a previsão de deveres individuais, os quais se devem articular com os direitos humanos e dos povos. Aliás, o preâmbulo é claro neste aspeto, reforçando que “o gozo dos direitos e liberdades implica o cumprimento dos deveres de cada um”. Esta autonomização dos deveres do Estado e do indivíduo, que a Carta Africana não define em termos hierárquicos, mas sim interdependentes, comporta algumas questões juridicamente complexas, desde logo porque apenas os Estados podem ser partes da Carta Africana.

    O articulado da Carta Africana é composto por 68 artigos, sendo que os direitos humanos individuais ocupam os primeiros 18 artigos na seguinte distribuição: obrigação de os Estados-Membros cumprirem as disposições da Carta (art. 1.º); proibição da discriminação (art. 2.º); direito à igualdade perante a lei (art. 3.º); direito à vida e à integridade física (art. 4.º); proibição da tortura e de outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (art. 5.º); direito à liberdade e proibição da detenção arbitrária (art. 6.º); direito a um julgamento justo (art. 7.º); direito à liberdade de consciência (art. 8.º); direito à informação e à liberdade de expressão (art. 9.º); direito à liberdade de associação (art. 10.º); direito à liberdade de reunião (art. 11.º); direito à liberdade de circulação e de residência (art. 12.º); direito à participação política e de acesso às funções públicas (art. 13.º); direito de propriedade (art. 14.º); direito ao trabalho (art. 15.º); direito à saúde (art. 16.º); direito à educação e à participação na vida cultural (art. 17.º); direito à proteção da família e dos grupos vulneráveis (art. 18.º). Posteriormente, os direitos coletivos e dos povos ocupam os cinco artigos seguintes, que são: direito à igualdade dos povos (art. 19.º); direito à autodeterminação e à existência (art. 20.º); direito à livre disposição das riquezas e dos recursos naturais (art. 21.º); direito ao desenvolvimento económico, social e cultural (art. 22.º); direito à paz e à segurança nacional e internacional (art. 23.º); direito a um meio ambiente satisfatório (art. 24.º). Por último, no que concerne aos deveres, estes dividem-se em deveres dos Estados – dever de promover os direitos humanos (art. 25.º) e dever de garantia de independência do poder judicial e dos tribunais (art. 26.º) – e deveres dos indivíduos – deveres para com a família e a comunidade (art. 27.º); dever de respeitar os outros e não os discriminar (art. 28.º); deveres gerais (art. 29.º). O restante articulado refere-se ao mecanismo de controlo previsto pela Carta Africana – no caso, a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos – detalhando a sua composição, sistema de comunicações/queixas e os relatórios estaduais sobre a implementação da Carta Africana, ficando os últimos cinco artigos (64.º a 68.º) reservados para as cláusulas finais.

    Dada a natureza sui generis dos direitos coletivos, importa referir que a Carta Africana não define, em momento algum, o que deve ser entendido como um povo titular dos direitos coletivos previstos. É consensual a posição de que os redatores da Carta Africana, de forma propositada, não definiram este conceito. Tal definição poderia dar lugar a interpretações abusivas dos direitos coletivos, em particular, do direitos de autodeterminação dos povos, cuja redação incorpora as resoluções da Assembleia Geral da ONU em matéria de autodeterminação dos territórios dependentes, mas que também se encontra consagrado em termos muito vagos (SANTOS, 2018, 220). O conceito de “povo” é, em si, bastante “camaleónico” (OUGURGOUZ, 2003, 211), o que traduz uma grande maleabilidade de entendimentos para este conceito. Na verdade, a doutrina tende a convergir na ideia de que não é possível um entendimento único (VILJOEN, 2012, 219). Para os povos está então previsto o seu direito à existência, à autodeterminação, ao desenvolvimento e à disposição dos recursos naturais. A Carta Africana parece adotar, em alguns direitos dos povos, um entendimento múltiplo deste conceito, muitas vezes deixando perceber que se refere a um entendimento mais limitado ou mais amplo do conceito, dependendo do artigo em questão (KIWANUKA, 1988, 100-101). Um entendimento controverso é aquele que se refere à agressão externa, à opressão ou colonização dos povos, cujo entendimento pode derivar em questões sensíveis na política africana, como acontece, em particular, com o caso da ocupação marroquina do território do Saara Ocidental (VILJOEN, 2012, 221).

    A Carta Africana concretiza uma visão que, não sendo conflituante com uma visão individualista de direitos humanos, assenta numa junção de pontos complementares. A ideia de indivisibilidade e interrelação entre todos os direitos humanos e dos povos, mas também entre direitos e deveres, é a grande potencialidade da Carta Africana e o que a distingue da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Muito embora se entenda que os direitos humanos individuais podem ser limitados face à necessidade de observar os deveres, também se prevê que ambos são importantes para a realização do individuo.

     

    III. Relativamente aos mecanismos de controlo dos direitos humanos, a Carta Africana prevê a criação da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Este é um órgão quase-judicial, com competência “técnico-jurisdicional e político” (MOCO, 2010, 216). As funções primordiais, de acordo com o art. 30.º da Carta Africana, são a promoção e a proteção dos direitos humanos. No entanto, este órgão teve um papel muito relevante na densificação dos direitos e deveres consagrados na Carta Africana, uma vez que também é competente para fazer interpretações da Carta Africana (PINTO, 2018, 323). O sistema de comunicações – que funciona de forma muito semelhante a uma queixa – tem permitido não só que os cidadãos reivindiquem, numa instância internacional, a violação dos seus direitos humanos, mas também que os comissários procurem alargar a proteção que a Carta Africana confere.

    Enquadrado nos ventos de mudança que marcaram a década de 90 do século XX, o sistema regional africano viria a ser reforçado com um tribunal de direitos humanos. Em 1998, foi adotado, em Ouagadougou (capital do Burkina Faso), o Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, relativo ao estabelecimento do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos (TADHP) (doravante Protocolo de Ouagadougou). O Protocolo de Ouagadougou entrou em vigor em 2004, e o TADHP foi instalado em 2006, em Arusha, na Tanzânia. Este tribunal difere dos seus congéneres Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) e Corte Interamericana dos Direitos Humanos (CIADH) no que concerne ao acesso dos cidadãos. Em primeiro lugar, sendo estabelecido por um protocolo à Carta Africana, de natureza facultativa, apenas os Estados subscritores do mesmo ficam sujeitos à jurisdição do Tribunal (GARRIDO, 2020, 326). Em segundo lugar, o art. 5.º do Protocolo de Ouagadoudou estabelece que cidadãos podem aceder diretamente ao tribunal nos casos em que o Estado de que são nacionais aceite essa jurisdição através do depósito de uma declaração junto do secretário-geral da organização (OUA e, posteriormente, União Africana). Dos 55 Estados Partes da Carta Africana, apenas 30 ratificaram o Protocolo de Ouagadougou, dos quais apenas nove depositaram a declaração que permite esse acesso, sendo certo que alguns, entretanto, retiraram essa declaração (GARRIDO, 2020, 326). Na ótica de alguns movimentos sociais, a natureza facultativa do Protocolo de Ouagadougou constitui uma violação da Carta Africana, em particular do direito a não ser discriminado, bem como no acesso à justiça. A questão chegou ao TADHP – caso Femi Falana v. União Africana –, que declarou inadmissível por falta de competência.

    Bibliografia

    ALBUQUERQUE, P. P. (2020). “Introdução”. In P.P. Albuquerque. Comentário da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e do Protocolo Adicional (5-12). Lisboa: Universidade Católica Editora.

    BALDÉ, A. (2017). O Sistema Africano de Direitos Humanos e a Experiência dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Lisboa: Universidade Católica Editora.

    GARRIDO, R. (2020). “Reflections About the African Court on Human and Peoples’ Rights Twenty Years After the Ouagadougou Protocol”. In M. Grilli et al. Visions of African Unity. New Perspectives in the History of Pan-Africanism and African Unification Projects (317-343). Cham: Palgrave MacMillan.

    KIWANUKA, R. (1988). “The Meaning of ‘People’ in the African Charter on Human and Peoples’ Rights”. The American Journal of International Law, 81 (1), 80-101.

    MOCO, M. (2010). Direitos Humanos e Seus Mecanismos de Protecção. As Particularidades do Sistema Africano. Coimbra: Almedina.

    PINTO, M. do C. (2018). “Artigo 30.º”. In P. Jerónimo et al. Comentário Lusófono à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (323-329). Braga: Observatório Lusófono dos Direitos Humanos.

    PIRES, M. J. M. (1999). “Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos”. Boletim de Documentação e Direitos Comparado, 79/80.

    OUGUERGOUZ, F. (2003). A Comprehensive Agenda for Human Dignity and Sustainable Democracy in African. A Haia: Martinus Nijhoff.

    SANTOS, A. A. (2018). “Artigo 20.º”. In P. Jerónimo et al. Comentário Lusófono à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (218-222). Braga: Observatório Lusófono dos Direitos Humanos.

    VILJOEN, F. (2012). International Human Rights Law in Africa (2.ª ed.). Oxford: Oxford University Press.

    Autor: Rui Garrido

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