Religião, Liberdade de [Dicionário Global]
Religião, Liberdade de [Dicionário Global]
A liberdade de religião é um princípio jurídico e um direito subjetivo com longo e amplo reconhecimento no Direito internacional dos direitos humanos e nas constituições de Estados de todo o mundo. Pense-se, por exemplo, na liberdade de culto reconhecida aos calvinistas franceses pelo Édito de Nantes de 1598; nas cláusulas sobre o livre exercício da religião constantes do Tratado de Vestefália de 1648 (artigos 28.º e 49.º); na proclamação, pela Declaração de Direitos da Virgínia de 1776 (artigo 16.º), de que a religião não pode ser imposta pela força e de que, por isso, todos os homens têm o direito ao livre exercício da religião, de acordo com os ditames da sua consciência; na estatuição de que ninguém pode ser incomodado pelas suas opiniões, inclusive religiosas, feita pela Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (artigo 10.º); na proibição da adoção de leis que instituam uma religião oficial ou impeçam o livre exercício da religião, imposta pela Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América de 1791; no reconhecimento, pela Constituição brasileira de 1891 (artigo 72.º § 3), a todos os indivíduos e confissões religiosas, do direito de exercerem pública e livremente o seu culto; no reconhecimento do direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 (artigo 18.º); na consagração da liberdade de consciência, de religião e de culto na Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976 (artigo 41.º); e no reconhecimento da liberdade de pensamento, consciência e religião pela Carta Árabe dos Direitos Humanos de 2004 (artigo 30.º).
Enquanto liberdade, a liberdade de religião implica genericamente a possibilidade de fazer tudo o que não lese outrem, para convocarmos o enunciado célebre do artigo 4.º da Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão. Começou por consistir sobretudo no direito de não ser perseguido por causa da religião professada, mas conheceu desenvolvimentos importantes ao longo dos tempos. Para maior concretização do conteúdo da liberdade de religião, podemos socorrer-nos das normas de Direito internacional de direitos humanos que hoje regem a matéria e das pronúncias a seu respeito emitidas pelos órgãos de supervisão competentes, nos termos das quais a liberdade de religião implica, para toda e qualquer pessoa: (i) a liberdade de ter ou adotar uma religião de sua escolha [artigo 18.º, n.º 1, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), de 1966]; (ii) a liberdade de não ter religião (§ 2 do Comentário Geral n.º 22 do Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas, de 1993); (iii) a liberdade de mudar de religião [artigos 18.º da DUDH, 9.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) de 1950, e 12.º, n.º 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969]; (iv) a liberdade de manifestar a sua religião, individualmente ou em conjunto com outros, tanto em público como em privado, pelo culto, o cumprimento dos ritos, as práticas e o ensino (artigos 18.º da DUDH, 18.º, n.º 1, do PIDCP, e 9.º, n.º 1, da CEDH), incluindo a construção de lugares de culto, a comemoração pública das festividades religiosas e a observância de dias de guarda, o uso de vestuário específico e o cumprimento de regras alimentares (§ 4 do Comentário Geral n.º 22 do Comité dos Direitos Humanos e artigo 6.º da Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Crença de 1981); (v) o direito a não ser objeto de pressões que atentem contra a liberdade de ter ou adotar uma religião de sua escolha (artigo 18.º, n.º 2, do PIDCP) e a não ser objeto de medidas restritivas que possam limitar essa liberdade (artigo 12.º, n.º 2, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos); (vi) o direito a não ser obrigado a revelar a sua adesão a uma religião ou crença (§ 3 do Comentário Geral n.º 22 do Comité dos Direitos Humanos); (vii) o direito de divulgar a sua religião (artigo 12.º, n.º 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos) e de procurar novos crentes para a sua religião [§§ 31 e 48 do acórdão Kokkinakis c. Grécia do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), de 1993]; (viii) o direito a não sofrer restrições à liberdade de manifestar a religião que não sejam previstas por lei e justificadas para proteger a segurança, a ordem e a saúde públicas, a moral e as liberdades e direitos de outrem (artigos 18.º, n.º 3, do PIDCP, 14.º, n.º 3, da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, 9.º, n.º 2, da CEDH, e 12.º, n.º 3, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), com a proibição aos Estados de invocar princípios morais decorrentes de uma única tradição religiosa para impor restrições à liberdade de manifestar a religião (§ 8 do Comentário Geral n.º 22 do Comité dos Direitos Humanos); (ix) a liberdade dos pais ou tutores legais de fazerem assegurar a educação religiosa e moral dos seus filhos ou pupilos em conformidade com as suas próprias convicções (artigos 18.º, n.º 4, do PIDCP, 12.º, n.º 4, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e 2.º do Protocolo Adicional n.º 1 à CEDH de 1952), ou, nos termos da Convenção sobre os Direitos da Criança (artigo 14.º, n.º 2), o direito e dever dos pais ou representantes legais de orientar a criança no exercício da liberdade de religião, de forma compatível com o desenvolvimento das suas capacidades; (x) o direito a não sofrer discriminação e a ser protegido contra tratamentos discriminatórios por causa da sua religião (e.g., artigos 2.º, n.º 1, e 26.º do PIDCP e 14.º da CEDH), o que pode exigir dos Estados que estabeleçam regimes diferenciados para pessoas cujas situações sejam substancialmente diferentes (§ 44 do acórdão Thlimmenos c. Grécia do TEDH, de 2000); (xi) o direito a objeção de consciência ao serviço militar (§ 11 do Comentário Geral n.º 22 do Comité dos Direitos Humanos); etc.
Apesar de o enunciado das disposições ser eminentemente individualista, a proteção internacional da liberdade de religião também abrange o reconhecimento de direitos coletivos às comunidades religiosas enquanto tais. No seu Comentário Geral n.º 22, o Comité dos Direitos Humanos notou que as práticas e o ensino da religião, protegidos pelo artigo 18.º, n.º 1, do PIDCP, incluem atos indispensáveis à condução pelos grupos religiosos dos seus assuntos próprios, como sejam a liberdade de escolherem os seus líderes religiosos e professores, de criarem seminários ou estabelecimentos de ensino e de prepararem e distribuírem textos religiosos (§ 4). O TEDH, por seu turno, tem observado que as comunidades religiosas existem tradicionalmente sob a forma de estruturas organizadas e que a existência autónoma de comunidades religiosas é indispensável para o pluralismo nas sociedades democráticas, pelo que constitui um aspeto central da proteção oferecida pelo artigo 9.º da CEDH (e.g., acórdão Schüth c. Alemanha, de 2010, § 58). Segundo o TEDH, quando é a organização de uma comunidade religiosa que está em causa, o artigo 9.º deve ser interpretado à luz do artigo 11.º da CEDH, que protege a vida associativa face a interferências injustificadas por parte do Estado (idem, ibidem). Isto implica, desde logo, que os Estados devem aceitar o direito das comunidades religiosas a reagir, de acordo com as suas próprias regras e interesses, a quaisquer movimentos dissidentes que possam pôr em causa a sua coesão, imagem ou unidade; e não podem obrigar uma comunidade religiosa a admitir ou a excluir membros, nem a confiar a uma determinada pessoa uma específica função religiosa (acórdão Fernández Martínez c. Espanha, de 2014, §§ 127-128). Por respeito pela autonomia das comunidades religiosas, o TEDH tem admitido, por exemplo, que estas podem impor deveres de lealdade aos seus trabalhadores quando eles ocupem cargos de chefia ou desempenhem funções particularmente importantes para o ethos da organização (como o ensino da religião), a ponto de a discrepância entre os valores da organização e as opções de vida (e.g., relação extraconjugal) ou as ideias publicamente assumidas pelos trabalhadores poderem justificar o seu despedimento (e.g., acórdãos Obst c. Alemanha, de 2010, e Fernández Martínez c. Espanha, cit.). Estas pronúncias do TEDH foram largamente influenciadas pela Diretiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional, nos termos da qual, “no caso das actividades profissionais de igrejas e de outras organizações públicas ou privadas cuja ética seja baseada na religião ou em convicções, uma diferença de tratamento baseada na religião ou nas convicções de uma pessoa não [constitui] discriminação sempre que, pela natureza dessas actividades ou pelo contexto da sua execução, a religião ou as convicções constituam um requisito profissional essencial, legítimo e justificado no âmbito da ética da organização”; com o que estas igrejas e organizações podem, dentro do respeito pelas disposições constitucionais e legislativas nacionais, “exigir das pessoas que para elas trabalham uma atitude de boa fé e de lealdade perante a ética da organização” (artigo 4.º, n.º 2). No plano do Direito interno dos Estados, os direitos coletivos geralmente reconhecidos às comunidades religiosas incluem a liberdade de organização e de exercício das funções religiosas e do culto, a possibilidade de ministrar ensino religioso nas escolas públicas, a garantia de tempos de emissão religiosa nos serviços públicos de televisão e de radiodifusão e a concessão de benefícios fiscais (vejam-se, a título ilustrativo, os artigos 22.º a 25.º e 32.º da Lei da Liberdade Religiosa portuguesa, Lei n.º 16/2001, de 22 de junho).
É comum distinguir – na liberdade de religião – o forum internum (correspondente à liberdade de crer ou não crer) do forum externum (correspondente à liberdade de manifestar a religião), atribuindo à primeira o caráter de direito absoluto e admitindo, em relação à segunda, que esta pode sofrer restrições para proteger a ordem, a segurança ou a saúde públicas e/ou para salvaguardar os direitos de outrem. Assim, por exemplo, o Comité dos Direitos Humanos, no seu Comentário Geral n.º 22, nota que o artigo 18.º do PIDCP distingue a liberdade de religião (i.e., liberdade de ter ou adotar uma religião) da liberdade de manifestar a religião e protege a primeira de forma incondicional (§ 3). A distinção é também evidente no enunciado do artigo 9.º da CEDH, cujo n.º 2, diversamente de preceitos congéneres nos artigos 8.º, 10.º e 11.º, não prevê a possibilidade de restringir todos os direitos enunciados no n.º 1, mas apenas a liberdade de manifestar a religião, como explicado pelo TEDH em Kokkinakis c. Grécia (§ 33). A Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, na interpretação que tem vindo a fazer do artigo 8.º da Carta Africana de 1981, tem adotado uma distinção semelhante, apesar de o enunciado do artigo 8.º ser mais lacónico do que os seus congéneres adotados ao nível da ONU e do Conselho da Europa, já que apenas estatui que a profissão e a prática da religião são garantidas e que, sob reserva de ordem pública, ninguém pode ser objeto de medidas de constrangimento que visem restringir a manifestação dessas liberdades. Na sua pronúncia de 2006 sobre a comunicação Hossam Ezzat & Rania Enayet v. The Arab Republic of Egypt, a Comissão Africana considerou que, ao forçarem os indivíduos a declarar pertencer a uma religião que não a sua sob pena de não conseguirem obter documentos de identificação individual, as autoridades egípcias haviam ofendido a consciência dos indivíduos, violando o forum internum da liberdade de religião, que, sendo absoluto, tornava irrelevante a reserva aposta pelo Egito ao artigo 8.º aquando da ratificação da Carta (§§ 138 e 143); em contrapartida, a Comissão já atribuiu relevância à reserva para efeitos da apreciação da eventual violação da liberdade de praticar e manifestar a religião (o forum externum), considerando que a recusa por parte de um Estado de reconhecer uma dada religião constituiria, em princípio, uma violação dos deveres estatais de respeito e proteção resultantes do artigo 1.º da Carta, mas que o Estado só seria internacionalmente responsável se tivesse assumido esses deveres ao abrigo do Direito internacional (§ 148). Na prática, a distinção entre as áreas do forum internum e do forum externum nem sempre é fácil de traçar – quando o Estado interfere de forma drástica no direito de manifestar a religião, exigindo que as pessoas abandonem aspetos que consideram fundamentais da sua fé, não estará a interferir realmente no direito a ter uma religião? – e não faltam autores, como Júlio Gomes, por exemplo, que a reputam de inútil, no plano da proteção oferecida, e de aberrante, na perspetiva dos crentes. Note-se que, segundo o Comité dos Direitos Humanos, o direito a não ser pressionado a adotar ou a abandonar uma religião, protegido pelo artigo 18.º, n.º 2, do PIDCP, é absoluto e a pressão proibida por este preceito pode ser exercida de várias formas, não apenas através do uso de ameaças ou da força física, mas também de políticas que restrinjam o acesso à educação, aos serviços de saúde, ao emprego ou aos direitos de participação política para os não crentes ou os crentes de uma religião diferente da maioritária (Comentário Geral n.º 22, § 5).
A liberdade de religião é frequentemente protegida de par com a liberdade de pensamento e com a liberdade de consciência. Assim é, por exemplo, nos artigos 18.º da DUDH e do PIDCP e no artigo 9.º da CEDH. A proteção (aparentemente redundante) do pensamento e da consciência é explicada com o argumento de que o pensamento, entendido enquanto processo, se distingue da consciência, entendida enquanto opinião ou conjunto de opiniões formadas ao cabo daquele processo. Os artigos 12.º da Convenção Americana e 8.º da Carta Africana de 1981 não incluem a liberdade de pensamento, mas esta omissão é desvalorizada por autores como Fatsah Ouguergouz, para quem o pensamento, enquanto tal, não necessita de ser protegido e a “lacuna” pode ser suprida através de uma interpretação extensiva da liberdade de consciência. A proteção da liberdade de religião e das liberdades de pensamento/consciência resulta do facto de estas não valerem apenas para os assuntos religiosos, protegendo igualmente o pensamento filosófico, científico e político (e a faculdade de pautar os comportamentos pelas convicções que daí decorram). Sendo concetualmente distinta da liberdade de consciência e da liberdade de religião, a liberdade de pensamento é condição indispensável para que uma e outra existam. Como observado em 2021 pelo então Relator Especial das Nações Unidas sobre Liberdade de Religião ou Crença, Ahmed Shaheed, tanto os crentes como os não crentes podem beneficiar da liberdade de pensamento enquanto veículo para a busca da verdade, incluindo a liberdade de escolha religiosa (e.g., o direito a ter ou mudar de religião e o direito a interpretar a respetiva religião) e a “liberdade contra a religião”, ou seja, a faculdade de pensar livremente sobre qualquer assunto sem a influência da religião.
As zonas de sobreposição entre pensamento, consciência e religião levam alguns autores, como Brian Leiter, a questionar se se justifica um tratamento autónomo da religião e a criticar a preferência dada, nos instrumentos internacionais de direitos humanos e na generalidade das constituições dos Estados ocidentais, às convicções religiosas sobre os demais imperativos de consciência. Em apoio de um tratamento especial para a religião, podemos, parafraseando Dominic McGoldrick, dizer que este se justifica por uma combinação de ideias filosóficas, tradições, fatores históricos, políticos e culturais, da preocupação com a proteção das minorias e do entendimento dominante sobre o contributo que a religião dá ou pode dar à sociedade. No Direito internacional dos direitos humanos, o dever de respeito pela liberdade de religião é geralmente explicado como um correlato necessário da protecção da dignidade dos seres humanos, atenta a importância que a religião assume enquanto elemento fundamental da conceção de vida dos crentes, do seu quotidiano e da sua identidade como indivíduos e como membros de grupos.
Muitas das reservas face à “preferência” dada à religião resultam do facto de, não raro, esta ser invocada para justificar práticas contrárias (ou percebidas como contrárias) aos direitos humanos. Mesmo os organismos internacionais com ação relevante no domínio da proteção dos direitos humanos encararam a liberdade de religião com as maiores cautelas, pelo impacto negativo que o exercício desta liberdade pode ter sobre outros direitos, sobretudo os direitos de mulheres e crianças. Vários tratados associam a religião, de forma mais ou menos direta, a “práticas nocivas” que os Estados têm o dever de desencorajar ou erradicar. Assim é, por exemplo, no artigo 1.º, n.º 3, da Carta Africana sobre os Direitos e o Bem-Estar da Criança de 1990, e no artigo 42.º, n.º 1, da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica de 2011. Pronunciando-se criticamente sobre o entendimento generalizado de que a liberdade de religião é incompatível com a igualdade de género, o Relator Especial das Nações Unidas sobre Liberdade de Religião ou Crença, Heiner Bielefeldt, disse, em 2013, que importa não perder de vista que a liberdade de religião é um direito humano e que, por isso, não protege violações de direitos humanos, como são algumas das práticas cruéis e discriminatórias habitualmente referidas para sustentar aquela radical incompatibilidade (casamentos forçados, excisão feminina, “crimes de honra”, etc.). Os Estados não devem, no entanto, presumir que uma prática religiosamente fundada é sempre lesiva ou indesejada pelas mulheres e merece ser restringida, porque isso pode contribuir para agravar a situação de muitas das mulheres visadas, como tem vindo a verificar-se com a proibição do uso de símbolos religiosos – em particular, o véu islâmico, nas suas várias modalidades – em instituições e/ou espaços públicos. O Relator Especial disse ainda que a liberdade de religião não protege as religiões em si mesmas – com as suas reivindicações sobre a verdade, os seus textos sagrados, os seus preceitos normativos, os seus rituais e cerimónias, a sua organização e hierarquia –, mas sim os seres humanos enquanto atores responsáveis que livremente escolhem e seguem as suas orientações religiosas, individualmente e em comunhão com os outros.
O respeito pela liberdade de religião (de indivíduos e grupos) não exige forçosamente que o Estado seja laico e esteja separado de todas as comunidades religiosas presentes no seu território. Isso mesmo é admitido pelo Comité dos Direitos Humanos, segundo o qual o cumprimento das obrigações decorrentes do PIDCP impõe apenas que, nos Estados onde uma religião seja reconhecida como religião de Estado, seja estabelecida como oficial ou tradicional e/ou corresponda à maioria da população, esse facto não deve ser usado para prejudicar de algum modo o gozo dos direitos civis e políticos protegidos pelo PIDCP, nem resultar em discriminação contra os não crentes ou os membros de outras religiões, através, por exemplo, da reserva para os membros da religião dominante da elegibilidade para o exercício de cargos públicos ou da imposição de especiais restrições à prática de religiões minoritárias (Comentário Geral n.º 22, § 9). Em todo o caso, não têm faltado chamadas de atenção para os riscos inerentes ao estabelecimento de religiões oficiais ou de Estado. O assunto tem ocupado sucessivos Relatores Especiais sobre Liberdade de Religião ou Crença nos últimos anos. Nos seus relatórios de 2013 e 2014, Heiner Bielefeldt notou que a violência em nome da religião tende a aumentar nos Estados confessionais e atinge de forma desproporcionada os dissidentes de ortodoxias religiosas, os membros de minorias religiosas e os convertidos; mostrou-se também preocupado pelo facto de muitos Estados, incluindo Estados formalmente laicos, promoverem uma herança religiosa específica como parte integrante da sua identidade nacional, por esta associação entre religião e identidade nacional funcionar amiúde em detrimento das religiões e crenças dos imigrantes e por, nestes contextos, as minorias religiosas consideradas indesejáveis se depararem, não raro, com grandes obstáculos ao tentarem registar-se e obter o reconhecimento da sua personalidade jurídica, o que as impede de desenvolver as estruturas necessárias para gerir os assuntos da comunidade e pode até implicar a ilegalidade da sua presença no território, aumentando a sua vulnerabilidade ao assédio e à intimidação por parte de particulares e agentes da autoridade. Em 2018, Ahmed Shaheed voltou a estes pontos, notando que, sempre que os Estados se associam explicitamente a uma religião específica, os não crentes e os membros de outros grupos religiosos invariavelmente sofrem várias formas de discriminação, direta e/ou indireta, como acontece, por exemplo, com a definição dos dias de descanso semanal e, no domínio do ensino, com a discriminação na alocação de fundos públicos e com a ausência de alternativas reais ao ensino religioso obrigatório. Ahmed Shaheed admitiu que os Estados podem conceder tratamento diferenciado a diferentes grupos religiosos e que as diferenças de tratamento não consubstanciam necessariamente tratamento discriminatório, mas sublinhou que só não será assim se as diferenças de tratamento tiverem por base critérios razoáveis e objetivos, cabendo sempre aos Estados o ónus de provar que o tratamento diferenciado prossegue um objetivo legítimo.
A separação entre Estado e comunidades religiosas, ainda que não indispensável, afigura-se, por isso, o caminho mais indicado para assegurar a liberdade de religião de todos. Esse é, pelo menos, o entendimento dominante entre as democracias ocidentais. O princípio da laicidade conhece, no entanto, diversas interpretações, podendo, também ele, conduzir a interferências problemáticas no exercício da liberdade de religião. Pense-se, por exemplo, no radicalismo da laïcité francesa, nos termos da qual o dever de neutralidade em matéria de religião impende, não apenas sobre o Estado e seus agentes, mas também sobre os utentes dos serviços públicos, justificando inter alia a proibição, imposta pela Lei n.º 2004-228, de 15 de março, do uso de símbolos ou vestuário reveladores de pertença religiosa, nas escolas, colégios e liceus públicos. Como explicam Jocelyne Césari et al., apesar de o Conseil d’Ètat francês ter sublinhado, em diversas ocasiões, que o uso de símbolos religiosos pelos indivíduos, enquanto sinal de pertença a uma dada religião, não prejudica o caráter laico do Estado, a expectativa social dominante entre os franceses é a de que a laicidade sirva para tornar ilegítima a afirmação pública da pertença a uma religião, em geral, e à religião do Outro, em particular. Esta exigência de que os indivíduos se apresentem de forma neutra no espaço público afigura-se claramente incompatível com a liberdade de manifestar a religião, mas as restrições ao uso de símbolos religiosos têm vindo a ser aceites pelo TEDH como justificadas para proteger a ordem e a segurança públicas e os direitos de outrem, atenta a grande margem de apreciação devida aos Estados neste domínio (e.g., acórdãos Dogru c. França, de 2008, e Aktas c. França, de 2009).
Ainda segundo a jurisprudência do TEDH, o dever de neutralidade e de imparcialidade dos Estados é incompatível com qualquer tipo de poder estatal para avaliar a legitimidade das convicções e práticas religiosas presentes nos respetivos territórios (e.g. acórdão Şahin c. Turquia, de 2005, § 107); uma proclamação que é, no entanto, contrariada por pronúncias do próprio TEDH, que não tem tido qualquer pejo em aceitar como boas as alegações estatais sobre a incompatibilidade entre os valores e práticas islâmicos e os valores de democracia, pluralismo e direitos humanos (e.g., acórdãos Dahlab c. Suíça, de 2001, Refah Partisi et al. c. Turquia, de 2003, e Şahin c. Turquia, cit.). Em acórdãos mais recentes, o TEDH tem vindo aliás a matizar aquela posição, admitindo que, em casos muito excecionais, os Estados possam pronunciar-se sobre se determinadas convicções ou práticas religiosas são legítimas (e.g., acórdão Schüth c. Alemanha, cit., § 58).
Seja como for, na ausência de uma definição estabilizada e universalmente aceite do que é religião, parece ser pacífico que os Estados devem adotar critérios abrangentes para o reconhecimento das religiões e proteger, não apenas as religiões tradicionais, com dimensão institucional, mas também as religiões de formação mais recente e/ou minoritárias, teístas e não teístas, como indicado pelo Comité dos Direitos Humanos no Comentário Geral n.º 22 (§ 2). É também essa a posição do TEDH, que nota que a proteção oferecida pelo artigo 9.º da CEDH seria ilusória se os Estados fossem autorizados a adotar interpretações restritivas do conceito e a negar natureza religiosa às crenças das chamadas formas não tradicionais de religião (e.g., acórdão Doğan et al. c. Turquia, de 2016, § 114). Como consta do Guia do Artigo 9.º da CEDH, publicado pelo secretariado do TEDH (§§ 17-18), a jurisprudência de Estrasburgo já reconheceu, de forma explítica ou implícita, a aplicação do artigo 9.º a religiões antigas, que existem há centenas ou milhares de anos (Alevismo, Budismo, várias denominações cristãs, várias formas de Hinduísmo, incluindo o Movimento Hare Krishna, várias formas de Islão, Judaísmo, Sikhismo, Taoísmo), e a religiões e práticas espirituais novas ou relativamente novas (Aumismo de Mandaron, Movimento Osho, Igreja da Unificação do Reverendo Sun Myung Moon, Mormonismo, Movimento Raeliano, Neo-Paganismo, Falun Gong ou Falun Dafa, religião do Santo Daime, Testemunhas de Jeová), independentemente de estas serem oficialmente reconhecidas como religiões pelos Estados em causa. Em alguns casos de dúvida quanto à natureza religiosa do sistema de crenças invocado (a respeito da Cientologia e do Neo-Paganismo), o TEDH tem, no entanto, optado por confiar na apreciação feita pelas autoridades estatais. Em contrapartida, o TEDH recusou abertamente a aplicação do artigo 9.º da CEDH ao “Pastafarianismo”, uma paródia da religião inicialmente pensada como protesto contra o ensino do creacionismo nas escolas públicas dos Estados Unidos da América, por não estarem preenchidos os requisitos de imperatividade, seriedade, coesão e importância necessários ao reconhecimento como religião ou crença (De Wilde c. Países Baixos, 2021, §§ 51-54). A Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, por seu turno, também adota um entendimento amplo de religião, tendo, por exemplo, considerado como tais as crenças espirituais e práticas cerimoniais do grupo tribal Endorois, na sua pronúncia sobre a comunicação Centre for Minority Rights Development (Kenya) and Minority Rights Group (on behalf of Endorois Welfare Council) v. Kenya, de 2009, em que concluiu pela existência de uma violação do artigo 8.º da Carta Africana de 1981 resultante da expulsão dos Endorois das suas terras ancestrais e da vedação de acesso aos seus lugares sagrados e cerimoniais. Num caso semelhante, de 2017, envolvendo a comunidade Ogiek da Floresta Mau e as autoridades do Quénia, o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos seguiu a mesma linha de raciocínio, tendo-se mostrado sensível ao hibridismo da experiência religiosa em África, ao observar que o facto de muitos Ogiek se terem convertido ao Cristianismo não significava que estes tivessem abandonado por completo as suas práticas religiosas tradicionais. O Tribunal disse também que, no contexto de sociedades tradicionais, onde frequentemente não existem instituições religiosas formais, é comum que a profissão e a prática da religião estejam intimamente relacionadas com a terra e o habitat e que, em particular nas sociedades indígenas, a liberdade de culto e de participar em cerimónias religiosas depende do acesso à terra e ao habitat natural.
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Como citar:
Jerónimo, P. (2022). “Liberdade de religião”. In J. E. Franco, P. Jerónimo, S. M. Alves-Jesus, T. C. Moreira (coords.). Dicionário Global dos Direitos Humanos. https://dignipediaglobal.pt/dicionario-global/liberdade-de-religiao [ISBN: 978-989-9012-74-5]